Conviver com a impunidade

 Conviver com a impunidade

A Copa do Mundo FIFA de 2022, disputada entre 21 de Novembro e 18 de Dezembro, no Qatar, é a 22.ª edição da competição, a primeira jogada no mundo árabe. (www.fifa.com)

Em cada quatro anos, como se de uma religião laica se tratasse, o futebol liga e religa as comunidades e os países à volta de uma bola.

Constroem-se novos templos, reabilitam-se os anteriores e os adeptos, crentes desta religião, assistem e peregrinam aos lugares “sagrados” para canonizar e celebrar os seus heróis, num ritual que dura aproximadamente um mês, com cerimónias de noventa minutos. Façamos um pouco de História.

Copa do Mundo de 1934: na mira do fascismo. A selecção nacional italiana (squadra Azzurra) ganha o Mundo. (www.ogol.com.br)

A Copa do Mundo (ou Campeonato do Mundo de Futebol) FIFA de 1934, na Itália, foi a segunda edição da Copa do Mundo masculina organizada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA). Aconteceu na república italiana entre 27 de Maio e 10 de Junho de 1934. Após o sucesso da edição de 1930, no Uruguai, esta foi a primeira vez que o campeonato foi realizado num país europeu. Devido ao número de federações interessadas em participar, a FIFA estabeleceu uma fase classificatória para cobrir as 16 vagas disponíveis, da qual até a Itália participou, apesar de ser a anfitriã.

O anfitrião Uruguai entrou para a História do futebol, em 1930, como primeiro campeão do Mundo, ao vencer a edição inaugural, perante 12 “convidados”, justificando o estatuto de bicampeão olímpico em título. (www.futebol365.pt)

O Uruguai, vencedor em 1930, recusou-se a participar, porque a Itália não quis comparecer no Mundial, sendo, até hoje, o único campeão que não quis defender o título. De facto, apenas quatro estados não europeus participaram: a Argentina, o Brasil, os Estados Unidos da América (EUA) e o Egipto, o primeiro país da África a participar. No total, estiveram dez países na competição.

A organização eliminou a fase de grupos e mudou o formato para uma fase de eliminação directa de jogo único, algo que só se repetiria na edição de 1938. Em caso de empate, seria disputada uma prorrogação de 30 minutos. E, se o resultado permanecesse o mesmo, uma partida de desempate seria disputada no dia seguinte.

A final entre a Itália e a, então, Checoslováquia, disputada no Estádio Nacional do Partido Nacional Fascista, terminou com uma vitória dos anfitriões por 2-1, sendo a primeira vez que precisou de prolongamento para ser resolvida. Fora do campo desportivo, a Copa do Mundo de 1934 foi utilizada pelo ditador Benito Mussolini de um ponto de vista propagandístico e nacionalista, com o objetivo de vender ao exterior as conquistas e ideais do fascismo italiano. A selecção transalpina, pressionada pela conquista do título, também foi acusada de desfrutar de arbitragens favoráveis ​​durante este torneio.

(www.alamy.es)

No ano de 1938, decorreu a terceira edição do campeonato mundial de futebol masculino organizado pela FIFA. Foi realizada na França, entre 4 e 19 de Junho de 1938.  A organização manteve, pela última vez, o formato da edição de 1934, que consistia numa fase de eliminação directa em jogo único. A partir de 1938, o país organizador e campeão da edição anterior qualificou-se directamente.

O torneio foi marcado pelo clima pré-guerra que existia antes da Segunda Guerra Mundial. Apenas 15 países participaram, porque a Áustria, classificada para as finais, havia sido ocupada pela Alemanha nazi e o seu lugar ficou vago. Além disso, 12 das 15 equipas eram europeias e havia apenas três equipas participantes do resto do Mundo. A América do Sul voltou as costas ao evento, em protesto contra a eleição de um estado europeu. Após o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, os eventos de guerra impediram a FIFA de organizar a Copa do Mundo nas suas edições subsequentes, tendo-a retomado só na edição de 1950, no Brasil.

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O Mundial da Argentina 1978

Hebe Pastor de Bonafini (1928–20 de Novembro de 2022) activista argentina pelos direitos humanos e uma das fundadoras da associação Mães da Praça de Maio. (www.elpatagonico.com)

“Matar quantos for preciso para restabelecer a ordem na Argentina”, foram as declarações do general Videla, ao tomar o poder em 1976, sendo muito claro sobre o seu programa de governo dictatorial.

O “processo de reorganização nacional” duraria sete anos, deixaria 30 mil mortos e desaparecidos, meio milhão de exilados. No ano de 1978, a violência da junta militar atinge o auge. São constantes os raptos de militantes de esquerda, de sindicalistas ou de familiares destes. Na baía de Buenos Aires, todos os dias surgem corpos marcados pela tortura. Cinco anos antes do golpe, a FIFA atribuiu à Argentina a organização do campeonato mundial de futebol de 1978.

Junta militar argentina, em 1976. (pt.m.wikipedia.org)

A junta militar herda o encargo, com preparativos atrasados, mas apressa-se a sinalizar o seu empenho na concretização do evento. Ao mesmo tempo que varre o país com a sua campanha de execuções, Videla quer credibilizar o seu governo e encenar, para o Mundo, uma normalidade interna.

Com o primeiro título da Argentina, os Países Baixos (ou Holanda) perderam a segunda final consecutiva, no fim da Copa do Mundo FIFA de 1978 (11.ª Copa do Mundo FIFA), então marcada por controvérsia em torno dos direitos humanos, atendendo a que o país estava controlado por uma ditadura militar que não poupou esforços para garantir que tudo corria de acordo com o seu plano. (maisfutebol.iol.pt)

Para isso, o Mundial é “uma ocasião única”, como assinala a agência de comunicação norte-americana Burson-Masteller, num relatório encomendado pela junta: o país deve ser levado a encarar o campeonato numa perspetiva ultra-nacionalista”. Segundo o Nouvel Observateur (NO), que teve acesso ao relatório, a Burson-Masteller indicou jornalistas de oito grandes países com tratamento especial: convites, prendas, diversões nocturnas (NO, edição de 30.12.1977). À frente do comité organizador, é colocado um general.

Hoje, confrontamo-nos com a realidade do Qatar e a organização já consagrada do Mundial. Estas são as cifras que circulam nos meios de informação. Por exemplo, a brasileira Rosely Rocha, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), escreve, em 17 de Novembro de 2022: “Cerca de 6,7 mil […] trabalhadores imigrantes podem ter morrido por falta de segurança e por exposição ao clima extremamente quente, de até 50º, no Qatar, durante a construção dos estádios faraônicos e mais caros do planeta para a Copa do Mundo de Futebol […]”. O presente campeonato teve início três dias depois, a 20 de Novembro.

Os valores definitivos parecem ser estes. Porém, as cifras oficias constituem algo que, desafortunadamente, nunca saberemos. Conviver com a impunidade é essa a única realidade oficial.

A título de curiosidade, reproduzimos o mapa de Athanasius Kircher mostrando a Atlântida no meio do oceano Atlântico. De Mundus Subterraneus (1669), publicado em Amsterdão. O mapa é orientado com o Sul para cima. Ao lado, mapa actual do Catar.

Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo alemão, testemunha das duas Guerras Mundiais, escreveu o poema que cito e que ganha uma actualidade gritante. O operário/trabalhador/escravo perante a História, perante um grande livro de História no qual estão os grandes acontecimentos e as realizações do Homem, mesmo daquele lendário homem da Atlântida, imaginada pelo filósofo grego Platão (428-347 a.C.) nos seus diálogos, Timeu e Crítias, também ele um explorado e engolido na voragem do esquecimento.

Nota final: Quando escrevo esta crónica, sabemos da morte de Hebe de Bonafini, histórica líder das Mães da Praça de Maio. Morre aos 93 anos, na sua Argentina. O movimento foi criado na década de 1970 e reúne mães que, até hoje, protestam e pedem informações sobre os filhos que desapareceram na ditadura militar.

O movimento Mães da Praça de Maio começou com um grupo de mães que caminhava todas as quintas-feiras diante da Casa Rosada para pedir a aparição, com vida, dos seus familiares. No domingo (20 de Novembro de 2022), morreu, em La Plata, Hebe de Bonafini, líder histórica e cofundadora das Mães da Praça de Maio. (www.bnews.com.br)

¡Honor y Gloria eterna para ella, por su coraje y valentía, que fueron incansables en su lucha por los derechos Humanos!

01/12/2022

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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