Conviver com a impunidade
Em cada quatro anos, como se de uma religião laica se tratasse, o futebol liga e religa as comunidades e os países à volta de uma bola.
Constroem-se novos templos, reabilitam-se os anteriores e os adeptos, crentes desta religião, assistem e peregrinam aos lugares “sagrados” para canonizar e celebrar os seus heróis, num ritual que dura aproximadamente um mês, com cerimónias de noventa minutos. Façamos um pouco de História.
A Copa do Mundo (ou Campeonato do Mundo de Futebol) FIFA de 1934, na Itália, foi a segunda edição da Copa do Mundo masculina organizada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA). Aconteceu na república italiana entre 27 de Maio e 10 de Junho de 1934. Após o sucesso da edição de 1930, no Uruguai, esta foi a primeira vez que o campeonato foi realizado num país europeu. Devido ao número de federações interessadas em participar, a FIFA estabeleceu uma fase classificatória para cobrir as 16 vagas disponíveis, da qual até a Itália participou, apesar de ser a anfitriã.
O Uruguai, vencedor em 1930, recusou-se a participar, porque a Itália não quis comparecer no Mundial, sendo, até hoje, o único campeão que não quis defender o título. De facto, apenas quatro estados não europeus participaram: a Argentina, o Brasil, os Estados Unidos da América (EUA) e o Egipto, o primeiro país da África a participar. No total, estiveram dez países na competição.
A organização eliminou a fase de grupos e mudou o formato para uma fase de eliminação directa de jogo único, algo que só se repetiria na edição de 1938. Em caso de empate, seria disputada uma prorrogação de 30 minutos. E, se o resultado permanecesse o mesmo, uma partida de desempate seria disputada no dia seguinte.
A final entre a Itália e a, então, Checoslováquia, disputada no Estádio Nacional do Partido Nacional Fascista, terminou com uma vitória dos anfitriões por 2-1, sendo a primeira vez que precisou de prolongamento para ser resolvida. Fora do campo desportivo, a Copa do Mundo de 1934 foi utilizada pelo ditador Benito Mussolini de um ponto de vista propagandístico e nacionalista, com o objetivo de vender ao exterior as conquistas e ideais do fascismo italiano. A selecção transalpina, pressionada pela conquista do título, também foi acusada de desfrutar de arbitragens favoráveis durante este torneio.
No ano de 1938, decorreu a terceira edição do campeonato mundial de futebol masculino organizado pela FIFA. Foi realizada na França, entre 4 e 19 de Junho de 1938. A organização manteve, pela última vez, o formato da edição de 1934, que consistia numa fase de eliminação directa em jogo único. A partir de 1938, o país organizador e campeão da edição anterior qualificou-se directamente.
O torneio foi marcado pelo clima pré-guerra que existia antes da Segunda Guerra Mundial. Apenas 15 países participaram, porque a Áustria, classificada para as finais, havia sido ocupada pela Alemanha nazi e o seu lugar ficou vago. Além disso, 12 das 15 equipas eram europeias e havia apenas três equipas participantes do resto do Mundo. A América do Sul voltou as costas ao evento, em protesto contra a eleição de um estado europeu. Após o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, os eventos de guerra impediram a FIFA de organizar a Copa do Mundo nas suas edições subsequentes, tendo-a retomado só na edição de 1950, no Brasil.
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O Mundial da Argentina 1978
“Matar quantos for preciso para restabelecer a ordem na Argentina”, foram as declarações do general Videla, ao tomar o poder em 1976, sendo muito claro sobre o seu programa de governo dictatorial.
O “processo de reorganização nacional” duraria sete anos, deixaria 30 mil mortos e desaparecidos, meio milhão de exilados. No ano de 1978, a violência da junta militar atinge o auge. São constantes os raptos de militantes de esquerda, de sindicalistas ou de familiares destes. Na baía de Buenos Aires, todos os dias surgem corpos marcados pela tortura. Cinco anos antes do golpe, a FIFA atribuiu à Argentina a organização do campeonato mundial de futebol de 1978.
A junta militar herda o encargo, com preparativos atrasados, mas apressa-se a sinalizar o seu empenho na concretização do evento. Ao mesmo tempo que varre o país com a sua campanha de execuções, Videla quer credibilizar o seu governo e encenar, para o Mundo, uma normalidade interna.
Para isso, o Mundial é “uma ocasião única”, como assinala a agência de comunicação norte-americana Burson-Masteller, num relatório encomendado pela junta: o país deve ser levado a “encarar o campeonato numa perspetiva ultra-nacionalista”. Segundo o Nouvel Observateur (NO), que teve acesso ao relatório, a Burson-Masteller indicou jornalistas de oito grandes países com tratamento especial: convites, prendas, diversões nocturnas (NO, edição de 30.12.1977). À frente do comité organizador, é colocado um general.
Hoje, confrontamo-nos com a realidade do Qatar e a organização já consagrada do Mundial. Estas são as cifras que circulam nos meios de informação. Por exemplo, a brasileira Rosely Rocha, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), escreve, em 17 de Novembro de 2022: “Cerca de 6,7 mil […] trabalhadores imigrantes podem ter morrido por falta de segurança e por exposição ao clima extremamente quente, de até 50º, no Qatar, durante a construção dos estádios faraônicos e mais caros do planeta para a Copa do Mundo de Futebol […]”. O presente campeonato teve início três dias depois, a 20 de Novembro.
Os valores definitivos parecem ser estes. Porém, as cifras oficias constituem algo que, desafortunadamente, nunca saberemos. Conviver com a impunidade é essa a única realidade oficial.
Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo alemão, testemunha das duas Guerras Mundiais, escreveu o poema que cito e que ganha uma actualidade gritante. O operário/trabalhador/escravo perante a História, perante um grande livro de História no qual estão os grandes acontecimentos e as realizações do Homem, mesmo daquele lendário homem da Atlântida, imaginada pelo filósofo grego Platão (428-347 a.C.) nos seus diálogos, Timeu e Crítias, também ele um explorado e engolido na voragem do esquecimento.
Nota final: Quando escrevo esta crónica, sabemos da morte de Hebe de Bonafini, histórica líder das Mães da Praça de Maio. Morre aos 93 anos, na sua Argentina. O movimento foi criado na década de 1970 e reúne mães que, até hoje, protestam e pedem informações sobre os filhos que desapareceram na ditadura militar.
¡Honor y Gloria eterna para ella, por su coraje y valentía, que fueron incansables en su lucha por los derechos Humanos!
01/12/2022