Copa América: a hora de dizer não
Sempre tem um a dizer que coisas como religião e futebol não se discute. Opa. Sim, se discute. Tudo que é humano merece nossa atenção e nosso debate. Até porque religião e futebol são espaços da vida que envolvem milhões de pessoas com um vínculo direto na emoção e interferem diretamente no cotidiano. Fazem guerras por conta de religião e matam pessoas por conta de futebol. Logo, há que prestar atenção. Porque tanto um quanto outro campo é também político.
Olhemos nosso país. Até bem pouco tempo um lugar que se gabava de ser extremamente democrático no campo da fé. Mesmo sendo considerado um país católico, as demais religiões podiam se expressar sem grandes dramas. Tudo válido e permitido. De repente, começa a se fortalecer uma postura de intolerância, começa a crescer um tipo de protestantismo baseado no velho testamento, violento e excludente. E o que era para ser uma questão de foro íntimo passa para o âmbito da política. Pessoas elegem vereadores, prefeitos, deputados e até presidente a partir de uma manipulação pela fé. Vivemos isso. Estamos ainda mergulhados nesse pesadelo no qual uma teologia enganadora fortalece o modo capitalista de ser no mundo. A teologia da prosperidade mentindo sobre ter coisas quando a realidade define pelo não-ser e o não-ter.
Agora aí está o futebol sendo a bola da vez. No meio de uma pandemia, quando já nos aproximamos de 500 mil mortos, o governo brasileiro aceita sediar um campeonato de futebol que tem sido campo de grandes disputas regionais: a Copa América. Uma disputa sul-americana que mexe com os sentimentos e as rivalidades consolidadas. O governo militar/civil de Bolsonaro tentando contaminar mais gente, tal como Nero colocando fogo em Roma: destruir, destruir, destruir tudo isso que tá aí.
Diante do absurdo até os jogadores da seleção, sempre tidos como alienados, se levantam. Pretendem se negar jogar. Atiça-se a política no campo sagrado do futebol, até porque, ela sempre está ali. Temos ainda na memória a valentia de Afonsinho, nos anos 1970, lutando contra o escravagismo do passe. O craque do Atlético, Reinaldo, um rebelde na luta contra o racismo. Paulo César Caju, guerreiro inesquecível na batalha contra a cartolagem e o racismo. E os jogadores do Corintians com seu movimento pelas Diretas Já, com o capitão Sócrates à frente, junto com Casagrande e Vladimir.
Nosso atual escrete canarinho não tem o perfil dos grandes gênios, rebeldes e craques. São garotos bem ajustados à máquina de moer gente, encarcerados em seus patrocínios, quase escravos das marcas que ostentam no peito. Mas, ainda assim murmuraram, e isso tem de ser levado em conta.
Pode ser que a pequena política se organize de forma a realizar a competição. Já derrubaram o presidente da CBF – um canalha – e deve assumir um militar. Pode ser que demitam o treinador Tite, que nada tem de rebelde ou revolucionário. Também pode ser que as mudanças na CBF imponham sansões e castigos aos jogadores que insistirem em não jogar. Tudo pode acontecer nesse país de hoje, quando não se tem sequer o verniz do chamado estado de direito. E lá estará o futebol no centro da arena política, colocando os leões e os cristãos no grande circo, para que um público de camisas amarelas se manifeste gritando mito em vez de gol.
Por isso essa não é uma batalha qualquer. É uma grande batalha da política. Não será pouca coisa ver a gurizada da seleção defender o isolamento e a vida dos brasileiros quando o próprio governo quer ver o país arder. Porque nós sabemos. Se houver a Copa e os estádios se abrirem, teremos novas ondas de Covid 19. E mesmo que os estádios não se abram, os jogadores estarão expostos. É, portanto, necessário dizer não.
Resta saber se essa gurizada estará à altura desse momento histórico. No cadinho de esperança que me resta, espero que sim. Nessa hora noa, dizer um sonoro não a essa sandice colocará a seleção brasileira na condição de um reduto de heróis. Porque nós sabemos que herói nunca é aquele que tem todas as armas para enfrentar o inimigo. Herói é aquele que sem qualquer condição e acossado pela sua insignificância, se levanta e diz não. Os jogadores da seleção, ainda que ganhem salários milionários, são apenas trabalhadores. Estão sujeitos a perder tudo o que têm em um segundo caso assim queiram seus patrocinadores. São escravos na roda do capital. Não será fácil para eles dizer não. E aquele que disser precisa ter nosso respeito e nosso reconhecimento.
Esperamos que digam, que coletivamente digam.