Covid-19 e a iminente candidatura dos EUA a estado-falhado

 Covid-19 e a iminente candidatura dos EUA a estado-falhado

Capitólio, EUA, 1984

Mesmo no começo da crise covid-19 previ que o número de infetados nos EUA chegasse aos milhões (talvez 3-10 milhões numa população de cerca de 330 milhões) num espaço de meses, digamos seis meses. O número total de infetados, à data de ontem, quase chegava aos 2,5 milhões. Na altura a imprensa estava adormecida mas alguns, poucos, fazedores de opinião fora do mainstream já revelavam alguma inquietação. Foi o caso de Tomas Pueyo, um jovem engenheiro em Stanford, autor e blogger. Os seus modelos matemáticos de surto pandémico, publicados num espaço informal (medium.com), previam certeiramente a ocorrência de uma situação catastrófica num espaço de meses.

Há uma diferença radical, quase semântica, entre a minha epifania e as previsões de Pueyo. A minha visão radicava (e radica) na perceção cultural do Estado-União, forjada nos vários anos em que vivi no país e consolidada sem hesitação nos anos seguintes, até hoje. A visão de Pueyo, que na altura era uma criança, assentava no pressuposto pragmático de que nada ou pouco seria feito para travar a pandemia. Lá teria as suas razões para pensar assim. Um dado matemático.

Revisitei mentalmente o passado e tentei registar epifanias concordantes que pudesse ter tido.

A distopia substituiu a utopia

Trabalhava então nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), em Bethesda, Maryland. Numa das poucas saídas, em viagem de carro rumo aos estados-granito-pinheiro bem a norte, junto ao Canadá, perdi-me à noite no labirinto dos guetos negros de Filadélfia.

Jovens negros atravessavam-se lentamente nas ruas, olhando de lado. Senti o olhar do ódio, mas também do medo. Provavelmente foi o medo que nos permitiu escapar. As pessoas tinham um ar modesto, rude e cru. As ruas eram escuras, sujas e escavacadas. Estaríamos em Ouagadougou ou na Monróvia por acidente, vítimas de Einstein e de insuspeitos “buracos de minhoca”?

Esta foi, provavelmente, a primeira epifania: que a utopia, afinal, tinha mais a forma de distopia.

A segunda veio pouco depois, quando tive que fazer uma espera de escala em Houston para um congresso. Creio que ninguém imagina o que era (e é) a baixa de uma cidade americana num domingo. Sem carro, utilizei os autocarros públicos e passeei a pé em Houston-downtown. Confrontei-me com grupos de homens não-brancos, plantados à porta de supermercados, com ar displicente mas desafiador. Que fazes aqui, man? Atenção que este é o nosso território. Mais tarde um colega explicou-me que tinha escapado porque me tinham tomado como polícia à paisana. Seja. Aprendi que não podia utilizar autocarros e passear na baixa ao domingo. Aliás não havia nada para ver ou fazer: a gentrificação já tinha feito o seu trabalho.

A segunda veio pouco depois, quando tive que fazer uma espera de escala em Houston para um congresso. Creio que ninguém imagina o que era (e é) a baixa de uma cidade americana num domingo. Sem carro, utilizei os autocarros públicos e passeei a pé em Houston-downtown. Confrontei-me com grupos de homens não-brancos, plantados à porta de supermercados, com ar displicente mas desafiador. Que fazes aqui, man? Atenção que este é o nosso território. Mais tarde um colega explicou-me que tinha escapado porque me tinham tomado como polícia à paisana. Seja. Aprendi que não podia utilizar autocarros e passear na baixa ao domingo. Aliás não havia nada para ver ou fazer: a gentrificação já tinha feito o seu trabalho.

A armadilha da religiosidade alienada

Revelarei apenas uma epifania mais, por falta de espaço. Tem a ver com um fenómeno que nos EUA é radical: a alienação causada por formas extremas de religiosidade.

Os Amish são uma comunidade cristã tradicionalista de origem germano-suíça, concentrada no Condado de Lancaster, Pensilvânia. Fazem uma vida simples e despojada, desprovida dos recursos tecnológicos comuns (eletricidade, telefone, veículos motorizados, computadores…). Vivem em reclusão e praticamente não utilizam os recursos públicos, incluindo a segurança social, ensino, saúde e tribunais. Seguem um código de vestuário rígido. Até aqui menos mal: há vários outros grupos que praticam reclusão e afastamento tecnológico, dentro e fora dos EUA. O pior vem depois.

Obrigam os membros à obediência religiosa e punem os relutantes com a excomunicação e outras formas de humilhação (o apedrejamento é uma delas, embora rara). Interrompem a educação formal precocemente, nos primeiros anos da adolescência. Desencorajam ativamente a educação universitária, condenando os membros à ignorância. Recusam o direito público e ignoram as normas legais. E a lista poderia continuar. Os Amish são um estado dentro de um estado. Ignoram os não-Amish, que por sua vez os toleram, por preguiça.

Não constituem a única forma extrema de religiosidade alienante. A seita Mórmon controla o estado do Utah, submetendo a vida pública a um regime castrador. Em vários estados era possível, até há pouco tempo, banir o ensino da teoria da evolução (Darwin) em nome do mito judaico-cristão da criação. Muito embora hoje tal seja ilegal, por decisão do Supremo, vários estados estão a introduzir leis que conferem aos professores liberdade para questionar teorias científicas estabelecidas, incluindo a teoria da evolução. A igreja Evangélica Protestante é caldo de cultura da maioria branca, tipicamente conservadora e tendencialmente ultraconservadora. Até mesmo a comunidade afroamericana cultiva práticas religiosas segregacionistas, no âmbito das igrejas Baptista e Metodista, muito embora aquelas tenham assumido uma função histórica de autoproteção face à violência do racismo branco. Cautela que o KKK anda por aí.

A epifania surgiu quando visitei os Amish e quando participei silenciosamente numa celebração reservada a negros, após convite invulgar de um membro da comunidade. O estado federal norte-americano estava a caminho do estado-falhado, e o resultado não seria bonito.

Comunidade Amish (Lancaster-County,1987).

O mau e o seu contrário

Os EUA concentram o melhor e o pior. Nunca encontrei semelhante dicotomia no mundo dito civilizado.

Negros e brancos odeiam-se mutuamente e o segregacionismo racial praticamente não se alterou, em termos sociais e culturais, desde a abolição da escravatura pela 13ª Emenda à Constituição americana, ratificada em 1865 depois da Guerra Civil. Mas os jovens negros e brancos negam o fatalismo histórico, promovendo a desobediência civil e lançando movimentos poderosos como o Black Lives Matter.

Numa atitude sem precedentes, académicos e organizações da área da Ciência, Engenharia, Tecnologia e Matemática (STEM), incluindo as prestigiadas revistas Nature, Science e Scientific American, fizeram uma greve académica há pouco mais de duas semanas (10/06), condenando a supremacia branca na ciência e dando passos práticos inéditos para eliminar o segregacionismo nas universidades (ver editorial da Nature de 9/06 intitulado “Systemic racism: science must listen, learn and change” – Nature 582, 147 (2020)).

Springer Nature – Scientific American, por seu turno, lançou uma plataforma de acesso livre, providenciando acesso grátis a conteúdos relevantes, jornalísticos e de investigação.  Finalmente, a IBM abandonou o negócio de reconhecimento facial, potencialmente utilizado pelas polícias para identificar manifestantes étnicos.

Há claramente razões para ter esperança. No entanto, os ventos políticos não sopram de maré.

O boçalismo, o desprezo pela cultura, a visão primária do mundo e o monoculturalismo egoísta alimentam um amplo setor da sociedade norte-americana, constituído essencialmente pelos deserdados da globalização. Mas os EUA ainda são o país onde se publica mais, onde se lê mais, onde as várias artes adquirem a expressão mais sublime, onde se faz a museologia mais avançada, onde existem os parques naturais mais estruturados, onde se faz mais e melhor ciência e onde se fazem os maiores avanços tecnológicos e biomédicos

Os estados rurais do universo trumpiano (Red States) promovem ativamente o negacionismo científico sempre que há condições políticas. O sórdido movimento anti vacinação parece ter atingido o seu ponto mais alto. Mas nunca como hoje os cientistas e largos setores da opinião pública foram tão ativos no combate à anti-ciência (ver o artigo de Peter Hotez na PLoS Biology 2020, 18(3): e3000683).

A expressão máxima do negacionismo parece ser a capitulação climática, agora que o gás e óleo de xisto transformou os EUA no primeiro produtor mundial e Trump se instalou na WH. A questão é tão óbvia que só lhe dedico duas linhas. Felizmente temos do nosso lado uma legião de políticos sérios e combativos, incluindo Al Gore e John Kerry, inúmeros ativistas e organizações de defesa do meio ambiente, praticamente todos os cientistas, municípios e órgãos estaduais, estados inteiros e muitíssimas empresas, incluindo construtoras de automóveis. Pode ser que sim.

A falência do estado social nos EUA tem talvez a sua expressão máxima na ausência de um serviço público de saúde, universal e tendencialmente gratuito. Com exceção das crianças e adultos mais pobres (cobertos pelo programa federal Medicaid) e dos mais idosos (Medicare), fica pelo caminho a esmagadora maioria da população, essencialmente constituída pela classe média e trabalhadora, que custeia as suas despesas de saúde com seguros privados, caros e limitados. O Presidente Obama lutou tenazmente contra o lobby das superfarmacêuticas e seguradoras privadas, fazendo passar a solução de compromisso que dá pelo nome carinhoso de Obamacare. Políticos de nova geração como Alexandria Ocasio-Cortez, a que se juntam old time runners como Bernie Sanders, lutam para reverter os efeitos arrasadores da política anti-Obama de Donald Trump, ao mesmo tempo que propõem um programa de saúde universal.

É bem possível que a questão da saúde decida a questão eleitoral americana, agora que ficou demonstrada a relação profunda entre a crise sanitária e a ausência de um verdadeiro serviço público de saúde. Também aqui há razões para ter esperança.

O boçalismo, o desprezo pela cultura, a visão primária do mundo e o monoculturalismo egoísta alimentam um amplo setor da sociedade norte-americana, constituído essencialmente pelos deserdados da globalização. Mas os EUA ainda são o país onde se publica mais, onde se lê mais, onde as várias artes adquirem a expressão mais sublime, onde se faz a museologia mais avançada, onde existem os parques naturais mais estruturados, onde se faz mais e melhor ciência e onde se fazem os maiores avanços tecnológicos e biomédicos.

São ainda, afinal, o país da New York Public Library, da Library of Congress, da National Library of Medicine, do Metropolitan, do Guggenheim, do J. Paul Getty, do Smithsonian, do Yellowstone, da Harvard U, da Stanford U, da UC Berkeley, da NASA, do MIT e do NIH. E do muito mais que não cabe nestas linhas.

O último sobressalto

Não é bem uma epifania, é mais um sobressalto. Um sobressalto de esperança. Acabei de o ter, ao escrever estas linhas finais.

Sonho que todas as minhas epifanias não venham afinal a ter expressão real. Vivi nos EUA tantos anos, tenho lá tantos amigos e são tantas as relações pessoais e profissionais, que o considero quase um país de adoção.

Desejo-lhe pois bem, contra toda a evidência.

Deposito esperança nos jovens, em todos os jovens, no Black Lives Matter, na IBM e noutras tecnológicas com espírito de missão, nos cientistas anti-negacionistas e anti-anti-ciência, nos ambientalistas e na dupla Gore-Kerry, nos jovens políticos, no Presidente Obama e noutros visionários, em Anthony Fauci e noutros profissionais do NIH. Deposito esperanças em todos os que lutam contra o obscurantismo radical

A pobreza extrema de uma faixa importante da população, a droga, a violência da falta de um serviço público de saúde, a gentrificação e a degradação das estruturas, a degradação do ambiente e as alterações climáticas, a supremacia branca e o racismo, a violência da religiosidade alienada, a anti-ciência, o negacionismo, o desprezo pela cultura e a visão sectária do mundo estão a acabar com este país. A crise sanitária parece fazer o remate final.

A vida, um processo espontâneo, segue a segunda lei da termodinâmica: a entropia só pode aumentar. Mas o aumento de entropia só tem que ser o suficiente, de forma a justificar a vida. Um aumento excessivo pode matá-la.

Há uma probabilidade, ínfima que seja, que a dose não seja letal. Por isso decidi alterar o título do artigo, que inicialmente era “Covid-19 e os EUA como estado falhado”.

Deposito esperança nos jovens, em todos os jovens, no Black Lives Matter, na IBM e noutras tecnológicas com espírito de missão, nos cientistas anti-negacionistas e anti-anti-ciência, nos ambientalistas e na dupla Gore-Kerry, nos jovens políticos, no Presidente Obama e noutros visionários, em Anthony Fauci e noutros profissionais do NIH. Deposito esperanças em todos os que lutam contra o obscurantismo radical.

Pode ser que os EUA sobrevivam e não se convertam num estado-falhado, para desgraça de todos. Pode ser.

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Luís Martinho Rosário

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