Covid-19, já foi tudo dito?
Decorridos cerca de seis meses sobre a pandemia do século, em versão mediatizada e gravosas consequências para o mundo global, com sofrimento, morte e modificação de paradigmas dados por adquiridos (como a proximidade das pessoas quebrada sem interlúdio), existem factos, análises e perspetivas que foram apontadas (muitas vezes superficialmente), mas não se tornam verdade, apenas pela vontade de serem desejadas:
1 – O estado “só sei que nada sei”, em progressão contínua para o que já comprovámos e sabemos, mediante a investigação científica séria e competente, deve sobrepor-se à arrogância de perorar, como se a COVID-19 fosse “uma gripezinha” ou, pelo contrário, fosse o fim do mundo, como se o que dizemos fosse verdade só porque acreditamos no que dizemos, ou como se a aparição constante nos mass media de múltiplos opinion-makers (nem sempre qualificados) traduzisse credibilidade à medida das convicções ou auto estima de quem se exibe.
2 – A profusão de fake news baseadas em exercícios pouco académicos sem rigor, porque o assunto vendia a consciência e ganhava em riqueza material, a par dos DDT (Donos Disto Tudo) do Mundo, verdadeiros idiotas com interesses políticos e historial de poder económico e corrupção tipo Trump ou Bolsonaro e um arrependido Boris Johnson, confundiu o povo, levando-o a atitudes contraditórias entre acreditar e verberar, agir por excesso ou omissão, ser alarmista ou leviano perante o cataclismo real.
3 – A ciência tem seguido o seu percurso desde o início, em orientação terapêutica, profilaxia e prevenção duma doença nova, minimizando os riscos e as consequências, mas transmitindo informações contraditórias que ainda alarmaram mais as pessoas (uso ou não uso de máscara), descredibilizaram instituições (como a OMS e Governos quanto baste) e contribuíram para o atraso das medidas de saúde pública necessárias (a disseminação estava controlada na China…).
4 – A contaminação e morte de numerosos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e outros operacionais) em vários Países, contaminados pelo SARS-CoV-2, tendo maior dimensão que a morbilidade e mortalidade relacionada com outras doenças transmissíveis (incluindo o vírus Ébola e o vírus de Marburg), demonstra, para além da extrema capacidade de propagação do SARS-CoV-2 e sua virulência, que as medidas de proteção individual dos profissionais de saúde foram inadequadas, insuficientes e desvalorizadas pelos decisores, e cuja responsabilidade civil, criminal e política continuará impune.
Imperdoável é o mínimo que se poderá dizer quando os três altos responsáveis do Ministério da Saúde de Portugal apontam os médicos por se contaminarem com o vírus no espaço familiar e social (pasme-se!), e não no local de trabalho. Que desrespeito por aqueles a quem os portugueses batem palmas, e finalmente compreendem que (todos) os médicos não são os privilegiados que lhes querem vender para manter os baixos salários no SNS, e que a maioria são seres humanos dedicados à causa pública, estão dispostos ao sacrifício pelos seus doentes e sofrem com o insucesso da ciência e da arte de curar.
5 – Mandava o bom senso (para qualquer pessoa medianamente inteligente) que o uso de máscara fosse generalizado no espaço público fechado e em espaço aberto onde há grande concentração e circulação de pessoas, acrescido pela dúvida razoável da transmissão do vírus em aerossolização, mas as entidades oficiais e alguns comentadores de regime (qualquer que ele seja, servem todos) preferiram centrar as suas elucubrações na (suposta) má utilização das máscaras que daí adviria, na sua taxa de eficácia que não seria 100 % (quando em saúde nunca há 100%…), na prioridade aos profissionais de saúde (que se queixavam com razão da falta de equipamento de proteção individual), e na ausência de máscaras para todos (ignorando que o mercado funciona…).
6 – A serenidade necessária no momento agudo da crise pandémica, para evitar o pânico que poderia levar a convulsões sociais e conflitos imparáveis, esteve ausente nas autoridades de saúde mundial, com as suas constantes contradições, funcionando como no futebol (o que hoje é verdade, amanhã é mentira), e arrastando responsáveis da saúde de alguns Países (entre os quais Portugal) na deriva de conselhos e contra-conselhos, hesitações e mistificações, sorrisos e nervosismo.
Salvou-se o primeiro-ministro que, a par dos profissionais de saúde no seu mister, foi um verdadeiro herói de senso e tranquilidade (nem sempre bem informado e não tendo os colaboradores que merecia). E salvou-se a constante referência oportuna às medidas de etiqueta respiratória, à higiene das mãos, ao distanciamento social e ao confinamento como meios de prevenção da transmissão do vírus.
7 – Graças à liderança do Governo via primeiro-ministro, à capacidade dos profissionais de saúde (a começar pelos médicos, apenas tolerados pelo Ministério da Saúde, o que se estranha, dada a sua qualificação), e à resiliência dos portugueses (muitas vezes tratados como se tivessem 5 anos…), ultrapassámos a fase de crescimento e estabilizámos a curva da doença, fazendo-nos acreditar na recessão da doença e preparação para a segunda vaga que nos trará o outono / inverno, até à existência de vacina eficaz e segura.
8 – O Ministério da Saúde de Portugal tem dado sinais positivos na sua função (não esquecer que se trata de um problema de saúde), dando o exemplo em extrema dedicação, assumindo a criação de regulamentação periódica, fazendo divulgação persistente dos dados epidemiológicos, propiciando a articulação entre instituições e serviços.
Infelizmente, os erros que cometeu e o estado da saúde atual, não nos permitem congratularmo-nos com a sua ação global, por mais que os “boys” bajuladores à procura de subir na escala de promoções só vejam elogios, e os índices de popularidade da pespineta (ela própria assume que o é) estejam em alta (maior poderá ser a queda, com o que aí ainda vem).
9 – Entre os erros cometidos, contam-se: a corrida atrás do prejuízo, esperando as evidências científicas que não surgiram como quereriam; o desaconselhamento do uso de máscara, quando era um evidência médica em prevenção, focando-se nos erros de utilização e não valorizando as suas vantagens; a falta de equipamentos de proteção individual dos profissionais de saúde, quando era uma necessidade absoluta (mais de 4.000 profissionais de saúde contaminados, como nunca aconteceu) e o não reconhecimento da sua escassez na prática clínica; a desconsideração feita à classe médica, não reconhecendo a sua liderança no conhecimento científico em saúde, e rodeando-se de técnicos não clínicos, e médicos sem experiência clínica (médicos de saúde pública), de que resultou um gabinete de crise muito tardiamente criado; a completa destruição do perfil do médico de família, que tanto custou a conseguir, pelo seu valor no SNS, limitando-os a polícias sinaleiros da COVID-19 (a par da Saúde 24 com enfermeiros), condenando-os a dúvidas, erros de apreciação e falhas de diagnóstico, e levando-os a abandonar a sua função primordial de médicos da pessoa, da família e da comunidade, ao cancelar as consultas presenciais.
10 – É particularmente grave a situação atual de ausência de consultas presenciais nos Centros de Saúde (ou limitadas a número reduzidíssimo), em que o doente se queixa (sintomas, indícios e pistas – avaliação subjetiva), o doente é observado (o médico ausculta, palpa, avalia mobilidade, sutura, etc. – avaliação objetiva), o médico interpreta as suas queixas (diagnostica) e estabelece um plano de atuação (medica, pede análises e outros exames auxiliares de diagnóstico, programa nova consulta).
Como é possível que a essência da medicina e da saúde deixe de ser feita, quando até em cenários de guerra e catástrofe é praticada, inclusive por voluntários que dão a vida pelo mundo fora, e se considere natural a ausência de consultas presenciais face ao risco de COVID-19, levando os doentes ao desespero?
Como é possível que em Portugal deixem de ser feitos 5.000 diagnósticos de cancro por mês (entre outras milhares de doenças, muitas delas fatais), a pretexto do risco de contaminação por COVID-19, abandonando os doentes não-COVID à sua sorte?
Como é possível perder a precocidade, a continuidade e a qualidade de vigilância em saúde, descontinuando o seguimento regular e periódico de grávidas, crianças, diabéticos, hipertensos ou a saúde sexual e reprodutiva, deixando a população entregue à (i)literacia, à medicina privada ou ao regresso de bruxos, ervanárias e aconselhamento não qualificado?
O médico de família acabou, passando a ser o/a telefonista do doente (pomposamente chamando teleconsulta ao contacto telefónico), a renovar receitas sem avaliar intercorrências e outros perigos da medicação, a pedir exames complementares sem o aval e rigor da observação clínica prévia, e a limitar a acessibilidade à sua consulta presencial que deveria aberta ou programada?
As respostas são óbvias.
Retrocedemos 40 anos, estamos antes da criação do SNS (1979), do Serviço Médico à Periferia (1975-82), e da criação das carreiras médicas (1982). O que está a acontecer na saúde em Portugal, só pode interpretar-se como incapacidade de organização em saúde, que só os “boys/girls”, os bajuladores, os ignotos, não vêem ou não querem ver.
Dito isto (expressão que agora está na moda), pactuar com esta situação é contribuir para a perda de qualidade do SNS, para o aumento e ressurgimento de doenças evitáveis e tratáveis em tempo, que deveria pesar na consciência de quem o permite.
11 – A pandemia da COVID-19 não acabou, infelizmente, e temem-se novos surtos em propagação, com a vinda do Outono / Inverno, a par do contínuo surgimento de outras doenças, muitas delas graves, que não hibernaram por pacatez nem foram para a Cochinchina ou para a península de Camechatca.
E, por isso, a pressão sobre os serviços de saúde vai aumentar, sendo que desta vez a economia não vai parar (o que agravará a situação em saúde), e não se podem preparar respostas no SNS por sorrisos (por otimismo ou sorriso amarelo), com amadorismos (os profissionais não são os decisores) e com privilégios para entidades (algumas festas e outras aglomerações de massas colocando em risco a saúde pública comunitária) e para alguns profissionais de saúde (no pecúlio, uns vão bem, outros mal).
Impõe-se (sem complexos e com rigor organizativo, técnico e científico):
A – Como medida de prevenção, o uso da máscara em todo o espaço público;
B – Maior rapidez na resposta às situações de crise na comunidade, nas famílias e nas interações sociais;
C – A continuidade de cuidados efetiva, com testes em massa e rastreios de contacto, em verdade;
D – A realização de grandes eventos (culturais, desportivos, lúdicos, recreativos ou políticos), com guias de orientação e normas únicas para todos, mas que contemplem as especificidades sem favorecimento ou receio do impacto social eleitoral;
E – Diagnosticar, orientar e tratar doentes COVID e não-COVID (não há doentes de primeira e doentes de segunda, há doentes!);
F – Apoiar os profissionais de saúde na sua dura missão de cuidar (dando-lhes condições de trabalho não discriminatórias e condições de igualdade remuneratória de acordo com a sua habilitação, função e mais-valia);
G – O investimento máximo na descoberta e na capacidade de assegurar a aquisição e distribuição de vacina eficaz e segura;
H – Ter os titulares decisores em saúde mais competentes na estrutura central e nas estruturas intermédias da saúde, que sejam técnicos e cientistas insuspeitos e não comissários políticos de primeira ou segunda linha (nenhum médico foi ministro da economia ou das finanças…).
Os decisores que não tiverem humildade nem vontade e capacidade para aplicar estas medidas, devem retornar ao seu local de trabalho de origem, onde serão úteis doutra forma. A COVID-19, apesar da sua pretensa banalização, ainda vai provocar mais sofrimento e vai dar que falar…