Covid ex-voto

 Covid ex-voto

Em 2020, tenho-me lembrado muito da cena de Alien, o Oitavo Passageiro,  em que o ciborgue Ash é confrontado com a sua admiração pelo monstro alienígena com ímpetos homicidas. Ash responde friamente: “eu admiro a pureza dele. Um sobrevivente, imperturbado pela consciência, pelo remorso ou por ilusões de moralidade”.

Às vezes, dou por mim a pensar nos mesmos termos sobre o vírus que nos tem tolhido a vida este ano. Certamente, não nutro por ele o mesmo fascínio que Ash sentia pelo oitavo passageiro, mas nunca deixa de me surpreender a forma como o Sars-CoV-2 não parece ligar muito às discussões que o têm como tópico. Máscaras que ameaçam a liberdade pessoal? Incómodo com a instalação de aplicações no telemóvel? A teoria elaboradíssima de que a covid-19 terá sido criada em laboratório e solta no mundo como uma espécie de cruzado da nova geopolítica? Vacinas com alumínio para podermos ser controlados via 5G por Bill Gates? O vírus não tem olhos para ler, ouvidos para ouvir e mente para se incomodar. Imperturbado pela consciência, pelo remorso ou pela moral, avança, sempre e cada vez mais, com uma indiferença matemática. Se os casos aumentam muito em determinada semana, as mortes aumentarão duas ou três semanas depois. Se as aglomerações acontecem, o vírus acontece. Se não se faz nada, o vírus faz.

O Brasil, no entanto, parece ser a grande exceção para a inevitabilidade trágica de 2020, porque por estes lados a covid-19 parece ser extremamente educada. Afinal, o primeiro caso só foi confirmado no dia 26 de Fevereiro, depois de ter deixado o Carnaval acontecer sob a doce ilusão de que o que acontece na China fica na China. E, apesar de os meus pais já me andarem a avisar sobre o levantamento da segunda onda em Portugal há mais de um mês, aqui o vírus manteve-se cavalheiro e deixou passar o período das eleições municipais, não contribuindo para o recrudescer da instabilidade política.

Esta foi a primeira vez que fui eleitor no Brasil. Meti os papéis depois das últimas presidenciais, quando percebi que não estava a gostar muito das pessoas escolhidas para gastar o dinheiro dos meus impostos. Continuo a não gostar muito, mas, pelo menos, desta vez tive uma palavra a dizer na escolha, além de ter desfrutado da experiência de votar numa urna eletrónica.

A urna eletrónica não é uma máquina avançada e complexa como o Ash de Alien. Parece mais uma caixa Multibanco que, em vez de dinheiro, nos dá governantes. Porém, no geral, a experiência foi mais tranquila e fácil do que votar na minha freguesia natal de Troviscoso, concelho de Monção: o meu lugar de voto fica a cinco minutos a pé de casa, não havia grandes filas, leva-se o cartão de leitor numa app do telemóvel, digita-se o código do candidato, a máquina faz pipipipi, e pronto. O voto obrigatório é tão fácil que nem se entende bem porque a abstenção ficou nos 30%. Aliás, continuo a não entender bem porque um lugar com voto obrigatório tem abstenção, mas  certamente é uma característica que facilitará o acolhimento da ideia em Portugal.

Foi só acontecer o segundo turno das eleições para que o maroto do vírus decidisse que a juventude de classe média alta estava a fazer festas clandestinas demais e, no dia seguinte, a quarentena em São Paulo recuou de novo para a fase amarela. Na teoria, isto significa que as lojas terão os horários moderadamente reduzidos e a entrada de clientes limitada a 40% da sua ocupação. Na prática, tem o mesmo efeito da bandeira amarela na praia: apesar de indicar um dever geral de cuidado, há sempre um ou outro aprendiz de Michael Phelps que decide enfrentar as ondas, vai além da rebentação e depois precisa ser salvo. Resultado: um nadador-salvador exausto, uma tarde de praia em que todos são tocados pela lembrança suave da mortalidade, um comércio estragado (porque ninguém vai comprar uma pratada de gambas depois de ver um sujeito a estrebuchar) e mais meia dúzia de aprendizes de Michael Phelps que olham a cena e pensam “ele não conseguiu, mas acho que eu consigo”.

O governador de São Paulo passou a campanha a dizer que a situação era estável, mas decidiu arriar a bandeira verde depois que o seu correligionário foi reinvestido para a prefeitura da capital do estado. Faz muito sentido: um novo começo é um novo começo, e é sempre bom dar uma oportunidade aos amigos para mostrarem serviço. Por enquanto, já se sabe que o transporte público vai aumentar, o que mostra que, diga-se o que se disser, as instituições continuam a funcionar. De qualquer forma, espero que se veja o mesmo ímpeto a lidar com a covid-19, porque já se percebeu que não nos livramos deste Alien com conversa fiada.

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Jorge Vaz Nande

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