Crónica de escárnio e bem dizer ou “isto é gozar com quem trabalha”

 Crónica de escárnio e bem dizer ou “isto é gozar com quem trabalha”

De acordo com números oficiais, em janeiro de 2020 Portugal tinha cerca de 700 camas de Medicina Intensiva, número que no início da pandemia valeu dias seguidos de aberturas de telejornais horrorizados com aquele que então era um dos mais baixos ratios da União Europeia. Um ano depois, o SNS tem mais de mil camas de cuidados intensivos. No momento em que estou a redigir este texto, estão internados mais de 850 doentes Covid no conjunto das mesmas Unidades e mais de 350 mil pessoas foram vacinadas. Perante estes números e o esforço feito subsiste uma dúvida: se o caos está no país e nos hospitais como por aí se insiste, ou se é a informação incompleta e apressada, sem grande treino para situações urgentes e inesperadas, que está caótica e baralhada. À pandemia justa-se, assim, a infodemia, com a desvantagem de não haver ainda vacinas contra esta.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano conta num dos seus livros — Ser como ellos y otros artículos — a fábula dos três cegos e do elefante, com que sua avó o encantava. Eis a versão resumida: um dos cegos apalpou o rabo do elefante e disse que se tratava de uma corda; o segundo cego acariciou uma das patas do elefante e vaticinou que se tratava de uma coluna. O terceiro apoiou a mão no corpo do elefante e afirmou que era uma parede. A fábula, explica Galeano, mostra que nos treinam para não ver senão fragmentos da realidade — “no ver más que pedacitos”.

Em certa medida é isso que temos vindo a observar, genericamente, no modo como a questão da pandemia tem vindo a ser vista e noticiada. Onde há mais camas e mais meios (já se esqueceram da saga dos ventiladores?) e mais capacidade de resposta e mais entrosamento entre unidades hospitalares, e até capacidade de articulação com entidades estrangeiras, e um ritmo assinalável na vacinação, haverá sempre cegos a não ver senão fragmentos da realidade — “no más que pedacitos”.

Despachemos o óbvio: é claro que muita coisa poderia ter sido mais bem pensada e planeada e que há falhas que deveriam ter sido evitadas. Tudo na vida pode sempre ser melhor e diferente. Mas focarmo-nos nisso e repeti-lo à exaustão é esconder o essencial.  Porque perante a escalada incontrolável que a pandemia assumiu (e hão-de dizer-me que país trata uma pandemia sem sobressaltos e erros de percurso) houve uma notável capacidade de resposta, profissionais incansáveis e sem sono, unidades a responder como nunca. Quem dera que metade dos dedos sabedores agora apontados tivessem, antes da pandemia, assumido a mesma energia pública na reivindicação de mais meios e de mais Orçamento para o SNS, cujos recursos vêm sendo exauridos desde há anos. Já estariam cegos nessa altura?

Um dos princípios elementares numa guerra — como os media tanto se excitavam em classificar no início o esforço de luta contra a pandemia — é manter em alta o moral das tropas e da população. Por alguma razão Churchill fomentou a criação do slogan “beauty is your duty”, colocando os produtos de beleza entre os bens de primeira necessidade.

Em Portugal, estranhamente, o que temos observado é o oposto. É como se parte da população armada de redes sociais até aos dentes, e os media com toda a sua artilharia pesada fizessem o jogo do inimigo. Nada corre bem, está tudo mal, não há um exemplo que nos tranquilize — o comportamento do bastonário da Ordem dos Médicos durante a primeira vaga fez escola e agora é quase tudo a uma só voz a chamar a primeira coisa que lhe ocorre, ao elefante.

A obsessão em descortinar o erro, em noticiar “o drama, a tragédia, o horror”, como há uns anos, enfatizando a voz, teatralizava diante das câmaras Artur Albarran, transformou-se num tique profissional

A obsessão em descortinar o erro, em noticiar “o drama, a tragédia, o horror”, como há uns anos, enfatizando a voz, teatralizava diante das câmaras Artur Albarran, transformou-se num tique profissional. De tal modo, que nem sequer se pensa 10 segundos (12, na loucura) nas perguntas a fazer. Dois exemplos, entre muitos possíveis: “—aguentarão os doentes de cuidados intensivos uma viagem de três ou quatro horas de avião atá à Áustria? Não será a viagem demasiado perigosa, um risco para a vida deles?”. Outro: “— Um doente crónico que não tenha acesso à Internet nem tenha médico de família ou qualquer médico a quem recorrer, como pode ele conseguir a declaração para entrar na segunda fase de vacinação?”. Só problemas, um caos completo, uma incompetência generalizada, como se depreenderia das perguntas feitas.

Porém, nestes dois casos — e em muitos outros —, os médicos entrevistados, muito pacientes e de forma muito clara, lá explicaram o óbvio: “— um doente que está em cuidados intensivos já está a ser tratado, não vai ser enviado para a Áustria”. “— Uma pessoa com uma doença crónica, seja insuficiência cardíaca, renal ou outra, está seguramente a ser seguida clinicamente; logo essa dificuldade que aponta não me parece que possa ser colocada”.

No meio de tanto alarido e frenesim é justo destacar o espaço de Grande Entrevista, na RTP3, onde Vítor Gonçalves consegue colocar as perguntas certas e dar espaço para as respostas, sem ameaçar o/a convidado/a com o olhar ou levantar-lhe a voz e fazer cara de mau.

Pelo meio, e para ajudar à festa, surgem as (in)oportunas opiniões de ex-ministros da Saúde como Maria de Belém e de Adalberto Campos Fernandes que nem parecem conhecer o setor nem o que é uma pandemia. Pior ou mais ridículo, só mesmo a declaração da ex-ministra Manuela Ferreira Leite, na TVI, ao afirmar sem se rir que o SNS foi criado pelo PSD. Claro que qualquer cidadão bem informado sabe que o seu partido votou contra a Lei que criou o SNS, em 1979. Mesmo assim, Manuela Ferreira Leite tem no Polígrafo um bom amigo. Embora rigoroso na reconstituição dos factos, aquela Plataforma não deixou, no final, de esclarecer os leitores, de forma bondosa, que “o que a ex-líder pretendeu dizer é que foi o governo PSD que implementou a lei aprovada pela esquerda”.

Em Portugal, aliás, o estatuto de ex-ministro é insuperável. Não há país no mundo ocidental que tenha tanto carinho e apetência por os ouvir e acolher, como os nossos media. Basta largarem o cargo e são de imediato requisitados para comentadores e colunistas. Como antigamente se dizia do OMO, também eles “lavam mais branco”. Branqueiam a sua anterior ação governativa e falam de escadote sobre o que quer que seja, independentemente das competências e conhecimentos que (não) têm. Chega a ser, aliás, exasperante vê-los debitar informação que deveria ser trabalho jornalístico e a fazer de  epidemiologistas e gestores de crise, com a mesma facilidade com que aparam o nó da gravata.

Mas como os media são generosos, ouvem e escutam opiniões a torto e a direito. Convenhamos: ao fim de tantos meses de pandemia, já é tempo de se saber quem são as vozes mais credíveis a ouvir. De resto, se não for para acrescentar conhecimento sustentado, para que serve ouvir a primeira voz disposta a mostrar-se, a fazer ruído? O jornalismo serve para esclarecer, não para aumentar a confusão ou criar barulho.

Contudo, até quando as notícias são exatas elas não deixam de criar sentimentos contraditórios. Exemplos: “Portugal é o 15.º país que mais vacina por 100 habitantes”; e “Portugal entre os países mais atrasados da UE na primeira dose da vacina” segundo afirmação do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças. As duas notícias estão corretas, mas o modo como são escritas e veiculadas induz leituras e perceções bem diversas sobre o processo de vacinação.

Em História de duas cidades Charles Dickens fala-nos de um tempo contraditório, aparentemente esquizofrénico, que parece ser o nosso: “Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; era o tempo da sabedoria e o tempo da loucura;(…) o cume da esperança e o inverno do desespero: tudo isto encontrávamos diante de nós”.

Essas realidades opostas são as cidades de Paris e Londres antes e durante a Revolução Francesa, embora essa visão a preto-e-branco que o escritor nos dá tenha semelhanças incríveis com a realidade que enfrentamos e percecionamos no espaço público mediatizado.

As notícias falam-nos do pior que acontece, dando a essas narrativas a força apocalítica que Dickens — que também foi jornalista — empresta à sua escrita num jogo de espelhos e contrastes. Até a perspetiva pessimista de madame Defarge incansável no seu tricot tem hoje no croché da mortalha informativa around the clock o reverso negativista da mesma moeda.

Não se retire do que fica dito que está a fazer-se a defesa do silenciamento da ação governativa, incluindo os problemas e surpresas que tem tido no processo de vacinação. De todo. Porém, ao surfarmos apenas a onda dos dois ou três casos de gente inqualificável que deu o golpe para ser vacinada, esquecemo-nos de novo do essencial: mais 350 mil já foram vacinadas. Ou seja, a regra  “é o melhor dos tempos” e é nele que estamos. Embora as contas sobre o ritmo de vacinação, que alguns exercícios apressados atiram para as calendas, não devam ser feitas descurando a variável mais importante: a existência de vacinas.

O meu ponto, portanto, é a substância do debate, o conteúdo e a atenção à informação que se procura e se transmite, o tempo e espaço que se conferem aos micro-casos, em detrimento do quadro inteiro. O meu ponto, insisto, não é aspergir a ação governativa com água benta como se o que ela faz, diz e não faz fosse chão sagrado. Há, tem havido ao longo dos meses, um erro de perspetiva e é isso que me interessa discutir: qual a responsabilidade social dos media? qual o papel individual de cada um de nós? Porque é que um mau exemplo tem uma exposição desmesurada face a 10 ou 30 bons exemplos? São estes também mobilizadores ou não para um certo mimetismo, se veiculados e devidamente explicados e enquadrados? É ou não relevante, diria imprescindível, que em vez de manter ausente e esquecido o trabalho notável que muita gente tem vindo a fazer, se sublinhe e explique que é a sua ação empenhada e coordenada que previne e evita que o caos se instale?

E agora que a vinda de apoio estrangeiro já aterrou em Lisboa, numa demonstração excelente do que deve ser a cooperação entre países, designadamente entre parceiros da EU, em que tudo está a ser devidamente coordenado e planeado, não me parece correto ou sequer justificável afiar de novo as facas. Basta ter memória do que se passou na primeira vaga para perceber que a cooperação internacional, neste ou em outros domínios, deveria ser uma regra, não a exceção.

Em todo o caso e olhando para as estatísticas, não me admiraria que depois de a pandemia passar, comecem a surgir opiniões ministeriáveis ou notícias a criticar o excesso de camas vazias, de ventiladores a criar teias de aranha, enfim, meios desajustados à realidade do país…porque, entretanto, deixou de haver doentes em número necessário.

Se tal suceder, parafraseando o nome de um popular programa de entretenimento onde toda a classe política adora ir mostrar-se, será mesmo “gozar com quem trabalha”.

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João Figueira

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