Crónica de uma morte anunciada

 Crónica de uma morte anunciada

(Créditos fotográficos: Markus Spiske – Unsplash)

  • Political language is designed to make lies sound truthful and murder respectable, and to give an appearance of solidity to pure wind. (George Orwell)
  • Europe is a garden. Most of the rest of the world a jungle. The jungle could invade the garden. The Jungle has a strong growth capacity. (Josep Borrell)

O Ocidente optou pela infantilização da sociedade. Privando-a de dados e de informação, capturou-a, embotou-lhe o instinto de indagação e entregou-a aos ditames aleatórios da propaganda. A própria imprensa deu já sinais – que eu admitiria inconcebíveis no nosso paradigma social – de autoritarismo, censurando articulistas e vozes dissonantes. Tenho, de há uns meses para cá, feito uso de textos de opinião para desinquietar consciências e distanciá-las do fatalismo de pensamento em que se enredaram. Que ganhei com isso? Ter sido banido.

(divagacoesligeiras.blogs.sapo.pt)

A aliança ocidental militar, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), “declarou” uma nova guerra fria à Rússia, estendida a outros países como a China. E, enquanto se agrava o conflito, seja no campo da batalha militar, que é a Ucrânia, seja na frente económica, sob a forma de sanções, seja no campo ideológico e cultural, pelo cancelamento da cultura russa (condenado por Sergio Mattarella, presidente de Itália) e diabolização daquele país, verifica-se um inédito fenómeno de censura e de controlo governamental dos órgãos de comunicação, que transpõe a barreira “oficial” e se alarga a jornalistas independentes e aos media alternativos.

Polígrafo fotografado no Museu Nacional de História Americana, Instituto Smithsonian. (nationalgeographic.pt)

Este fenómeno não poupa sequer alguns dos mais notáveis jornalistas de investigação, como Seymour Hersh, acariciado com o Prémio Pulitzer, alvo também de censura na plataforma Facebook, no tocante à sua investigação sobre a sabotagem dos gasodutos Nord Stream, um projecto europeu e não apenas russo, cuja metade dos encargos coube a empresas alemãs, francesas e neerlandesas.

Watergate definiu um padrão de mentira. O desmentido de Nixon
tornou-se icónico. (nationalgeographic.pt)

Têm sido frequentes as intervenções de activistas em think tanks (gabinetes estratégicos de discussão) e em encontros de jornalistas. Recentemente, numa conferência de jornalistas norte-americanos sobre liberdade de imprensa, na presença de jornalistas do The New Yorker, da CBS News, de Vivien Goldman e de Anna Nemzer, editora da TV Rain, a intervenção de dois convidados que aludiram à detenção de Julian Assange, ao banimento da língua russa pelas autoridades ucranianas e à ilegalização de partidos políticos, à invasão do Iraque e à morte de um milhão de pessoas baseada em mentiras, bem como à ausência de Seymour Hersh no painel, causou um confrangedor incómodo.

O activista Jose Vega confrontou os representantes dos grandes media com perguntas prementes durante uma mesa-redonda sobre Política e Imprensa, realizada na Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, mas eles não puderam responder. (redeco.com.ar)

O mesmo constrangimento foi sentido quando o activista Jose Vega fez perguntas inconvenientes sobre Seymour Hersh, acerca da sabotagem da rede de gasodutos Nord Stream e a propósito da demissão de Tucker Carlson (apresentador de televisão, comentador e analista político norte-americano), a um painel de jornalismo e liberdade de imprensa, na Universidade de Columbia, perante o editor-chefe do New York Times e representantes dos jornais The Washington Post e Los Angeles Times e da agência noticiosa Reuters.

Também os jornalistas George Eliason (autor da peça jornalística “That’s why I’m here”) e Janus Putkomen, ambos a trabalharem na região de Donbass, têm sido silenciados ao máximo na imprensa ocidental. Não é muito diferente do que se passa com o português Bruno Amaral de Carvalho.

O jornalista e ex-assessor do Governo Federal da Alemanha, Udo Ulfkotte
revelou o seu envolvimento no chamado “jornalismo negro”, confessando
que teve de mentir repetidamente. Entretanto, o destacado jornalista
expõe a campanha anti-russa na imprensa ocidental. (jornalggn.com.br)

Udo Ulfkotte, que trabalhou 17 anos para um dos mais importantes jornais alemães, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, sendo jornalista durante 20 anos, descreveu, na sua obra “Journalist for Hire”, os métodos usados pelo regime norte-americano para controlar a influência dos media da Alemanha: “Fui educado para mentir, para trair e para não dizer a verdade ao público. Sei que o que fiz no passado foi errado e isso inclui ter manipulado as pessoas e ter feito propaganda contra a Rússia”. Udo Ulfkotte morreu de forma misteriosa.

Gilbert Doctorow (Créditos fotográficos: The National Press Club –
truthdig.com)

O jornalista e cientista político independente Gilbert Doctorow afirmou, não há muito tempo, que o aparelho militar russo destruiu um bunker onde se encontrariam centenas de oficiais da OTAN, dos quais 200 generais de topo que foram abatidos. O silêncio dos media ocidentais sobre esta matéria manchou o jornalismo. Da mesma forma, o silenciamento em torno da repressão religiosa actual sobre crentes da Igreja Ortodoxa russa na Ucrânia (o caso paradigmático é o de Kiev-Pecherska Lavra, também conhecido como Mosteiro das Cavernas de Kiev) não tem precedentes. Há relatos (escritos e filmados) de igrejas queimadas (St. Job de Pochaev, em Chernivtsi, por exemplo) e de crentes humilhados nos “corredores da vergonha”, em várias localidades ucranianas.

A recente demissão de Tucker Carlson da Fox News, pense-se o que se quiser do jornalista e da sua motivação ideológica, admite somente uma leitura: as forças inibidoras do nosso mundo estão a funcionar.

(Créditos fotográficos: Reprodução / FOX News – dunapress.com)

Entretanto, o silêncio dos inocentes continua: a desdolarização está em curso, 19 países pretendem unir-se aos BRICS (agrupamento de países de mercado emergente em relação ao seu desenvolvimento económico: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e, a 29 de Abril, ocorreu a Conferência Global Multipolar – 2023 (Global Conference on Multipolarity – 2023), com intervenções de jornalistas, de cientistas políticos, de filósofos, de economistas, de escritores e poetas, de professores universitários, de arquitectos, de agentes culturais e de políticos de uma imensidão de países das mais diversas regiões do Mundo, incluindo o mundo ocidental (Suíça, Polónia, Áustria, Finlândia, etc.). Não é já possível ocultar o que está a acontecer. É o princípio do “fim do mundo”, como o conhecemos. Foi, em parte, isso o que explicaram Alexander Dugin, Pepe Escobar, Alexander Wolfheze, Dimitros Konstantakopoulos, Sergey Glazyev, Konstantin Malofeev, Keith Bennett e Eliseo Bertolasi, entre tantos outros.

Konstantin Malofeev, empresário russo e dono da TV Tsargrad, participou na
Conferência Global Multipolar, em 29 de Abril de 2023. (geopolitika.ru)

Num discurso impiedoso, Konstantin Malofeev afirma: “O liberalismo, o liberalismo global, está morto. Aquilo que Francis Fukuyama acreditou ser o fim da História, o que foi apresentado aos povos não apenas como o fim da História mas o seu pináculo, a chegar ao destino final – uma sociedade ideal absoluta saída da democracia liberal Ocidental –, acabou por ser uma mentira. Verificou-se que o mundo da democracia liberal é um mundo de caos, violência, segregação, racismo e de ódios universais. É um mundo governado pelas minorias. Para começar, a minoria ocidental pretendia governar a maioria mundial. […] Mas esse tempo passou. […] A perspectiva civilizacional implica que as diferentes civilizações são iguais.”

Posicionada de um dos lados, a imprensa ocidental mistura factos e opiniões e não consegue esconder a farsa de que a maioria das redacções dos jornais (e dos seus conselhos editoriais) se tornou um gabinete estratégico e uma linha avançada ao serviço do mundo unipolar norte-americano. Eis-nos chegados a um tempo em que jornalistas silenciam jornalistas. Mas, nesse exercício perverso, jogam contra si mesmos.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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04/05/2023

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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