Cultura, arte e cidade
Acredito, contra todos os indícios atuais, que haverá no futuro vida para além da guerra, da xenofobia e do racismo, da exploração económica, da discriminação social e das crises financeiras que ensombram as vidas das pessoas em todo o mundo. Confesso, no entanto, que tenho dificuldade em imaginar um mundo em que elas não existam, de tal modo o presente está marcado pela sombra de um futuro funesto. O meu pessimismo não me permite imaginar um futuro sem mercados, agências de rating ou poluição. E, no entanto, mantenho a esperança de que não existirá futuro sem cultura, sem arte e sem cidadania.
Hoje, a infinita realidade virtual sobrepõe-se à concretude finita em sociedade, a ponto de muitos migrarem para aquele mundo, expulsando a cidade real das suas vidas e desabitando o espaço público físico, cada vez mais reduzido e ocupado pela atividade exclusiva do comprar e vender das grandes superfícies comerciais.
Passamos demasiado tempo (pre)ocupados com o efémero e o imediato e com isso corremos o risco de ir perdendo memória. E como projetar e construir o futuro se a memória se tornar cada vez mais débil? O século XX, ainda tão próximo que pertence às vidas da maior parte de nós, é o evidente da nossa desmemória. É a cultura que nos alerta persistentemente para isso? Não, é a arte. Godard exemplifica isso, de forma admirável, em Je vous salue, Sarajevo, um pequeno filme que nos fala, justamente, de cultura, de arte e da nossa desmemória. Numa esquina da cidade cercada, um soldado jovem fuma, displicente, um cigarro, ao mesmo tempo que pontapeia na cabeça uma mulher estendida no passeio. Dois outros soldados olham noutra direção, talvez para lado nenhum. A voz do narrador (Godard) diz:
“… há a regra e há a exceção. Há a cultura, que é a regra, e há a exceção, que é a arte. Toda a gente diz a regra, cigarro, computador, t-shirt, televisão, turismo, guerra. Ninguém diz a exceção, isso não se diz, isso escreve-se: Flaubert, Dostoievsky. Isso compõe-se: Gershwin, Mozart. Isso pinta-se: Cézanne, Vermeer. Isso filma-se: Antonioni, Vigo. Ou isso vive-se, e é então a arte de viver: Srebrenica, Mostar, Sarajevo. É próprio da regra querer a morte da exceção. Será pois próprio da regra da Europa da cultura organizar a morte da arte de viver que ainda floresce.”
Srebrenica foi vítima, em 1996, do maior assassínio em massa na Europa após a Segunda Guerra Mundial e o primeiro caso de genocídio legalmente reconhecido depois do Holocausto. Mostar assistiu impotente ao bombardeamento e à destruição da ponte projetada no séc XV pelo arquiteto otomano Hajrudin Mimar. Sem qualquer valor estratégico ou militar, a ponte foi destruída por ser património e símbolo da comunidade muçulmana, que se quis não apenas derrotar mas, sobretudo, humilhar. E Sarajevo sofreu o cerco mais longo da história da guerra moderna: no final, ficaram mais de 12.000 mortos e 50.000 feridos. 85% das vítimas eram civis.
O filme de Godard exprime um desejo de futuro: um futuro para a arte, para outras culturas e outras cidades; um desejo manifestado num presente em que as sociedades não são homogéneas e as culturas não são sistemas de vida partilhados, embora ajam como se fossem, em nome de uma pretensa identidade cultural unívoca, idêntica a si mesma, quando, na realidade, as identidades se constroem pela justaposição de modos de vida diferentes e as culturas só sobrevivem e florescem em diálogo livre e pleno entre si.
Hoje, existe em muitas cidades uma efetiva diversidade cultural, mas raramente se verifica nelas um autêntico diálogo intercultural que permita, de acordo com a Convenção da UNESCOde 2005, construir pontes entre os povos, assentes numa cultura da paz no respeito pelo Outro. Em vez disso, prevalece o isolamento; cada cultura dialoga sobretudo consigo e com o seu passado, seja ele verdadeiro ou, muitas vezes, imaginado. E a cultura ocidental, que nasceu da confluência de várias culturas, é porventura das que menos dialogam. Vinte anos depois, mantém-se atual a comunicação que José Pacheco Pereira apresentou ao Seminário Internacional “Europa e Cultura”, realizado na Gulbenkian:
“Nenhuma grande obra — obra fundadora, central — das outras culturas tocou, ao de leve que seja, a cultura ocidental. A começar pelos grandes textos religiosos, eles próprios fontes imagéticas e simbólicas fundadoras da literatura e da arte, que ficam assim incompreendidas. Nem o Alcorão, nem os Veda, nem o Mahabarata, nem o Bagavad-Gita. Nem, depois, por arrastamento, poderiam ser-nos próximos O Sonho do Pavilhão Vermelho, a ópera chinesa, os Analecta, de Confúcio, o teatro Nô e kabuki, a música popular árabe, o cinema indiano. Não os entendemos, tornam-se ‘mundos outros’ que pouco nos dizem, dizendo, no entanto, muito.” (“A solidão das culturas”, Ler nº 42, Primavera-Verão, 1998).
Ao diálogo sobrepõe-se cada vez mais o confronto e a intolerância, e a diversidade existente tende sempre a ser organizada em volta de uma identidade hegemónica. A urgência de um futuro a construir a partir de hoje significa impedir a unificação do que é plural e garantir que a diversidade e a liberdade sejam não apenas universalmente reconhecidas, mas praticadascomo direitos humanos individuais e coletivos inalienáveis.
Da cultura e da arte os poderes interessam-se sobretudo pela rentabilidade económica. Portugal não é exceção. Recorde-se o estudo A cultura e a criatividade na internacionalização da economia portuguesa (2013), conhecido por Relatório Mateus, em que a avaliação de uma obra ou de um evento cultural resulta, sobretudo, da análise do seu contributo para o PIB nacional e do número de visionamentos e referências nas redes sociais. Não admira, pois, o primado do entretenimentoconsumista e tantas vezes embrutecedor, produzido e difundido por revistas, tabloides e canais televisivos generalistas portugueses (com a louvável exceção da RTP 2) que, invocando o interesse do público (ou seja, as leis do mercado), vivem da sistemática espetacularização dos aspetos mais degradantes de certos comportamentos individuais e coletivos.
Regresso, momentaneamente, a Godard. Em Duas ou três coisas sobre ela, diz-se: a linguagem é a casa que habitamos. É precisamente desta casa da linguagem que o poder mediático nos quer expulsar, degradando sistematicamente a palavra, concebendo-a como simples legenda de uma qualquer imagem e fazendo passar como verdade indiscutível a mentira mil vezes repetida de que uma imagem vale mais que mil palavras. Para que no futuro possamos continuar a habitar a casa da linguagem é pois imprescindível contrapor um discurso que se oponha à babugem do visual mediático: as artes sabem fazer isso.
A relação entre cultura e liberdade nem sempre é clara, mas a relação entre arte e liberdade sim. Há, como sabemos, culturas opressivas. Não conheço artes opressivas. Sophia de Mello Breyner escreveu que a arte deve ser livre, porque o ato de criação é em si um ato de liberdade, isto é, a arte justifica-se pela sua própria necessidade. À cidade e ao mundo, ela oferece, entre outros, o poder de conferir visibilidade a quem não a tem e, em muitos casos, nunca teve. Recordemos filmes como Ossos, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha, de Pedro Costa, que deram corpo e voz aos habitantes do Bairro das Fontainhas. Acima de tudo, a arte oferece-nos o poder de interrogar, causar espanto e assombrar os poderes hegemónicos, permitindo, nesta esplêndida inquietação, que a cidade viva de um modo mais participativo, mais livre e mais democrático.
É este poder da arte que me permite imaginar um futuro libertado do paradigma atual, em que cada cidade compete, em permanente frenesim, pelo êxito económico contra todas as outras, enquanto, internamente, fecha os olhos a fenómenos como a gentrificação e permite o aumento das desigualdades. O futuro que prefiro imaginar para a minha cidade é aquele em que a cultura e a arte não são usadas fundamentalmente para angariar prestígio ou promover o turismo, mas aquele em que a cidade define políticas culturais em função do primado dos valores, dignifica os espaços públicos enquanto lugares de criação e fruição social, cultural e artística e promove a imaginação e a criatividade através da promoção de práticas inovadoras.
Para que haja cidade, escreve Jean-Luc Nancy em La ville au loin, é preciso algo mais do que uma simples soma de funções. Não basta definir necessidades de governação, de bem-estar ou de trocas. Para isso bastavam a fortaleza, a comarca administrativa e o mercado. Mas a cidade, acrescenta Nancy, não nasce de um conjunto de funções, nasce de uma combinação de diferentes artes, cuja finalidade é produzir uma outra arte, que é, afinal, a arte de viver em conjunto. É para este fim e não outro que as cidades são fundadas, construídas e organizadas.
O que imagino e exijo para a minha cidade, a cidade da arte de viver em conjunto, é um compromisso diário com o futuro, assumido e praticado no presente e destinado a ser legado ao futuro.
É por isso que falar da cultura, da arte e da cidade é, inevitavelmente, falar de democracia, de cidadania e de política.
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16/05/2018