Da necessidade do surreal

 Da necessidade do surreal

(Créditos fotográficos: Irene Giunta – Unsplash)

Há tempos em que a realidade não mais se sustenta sem a metafísica, o extra corpóreo. A realidade, por vezes, não se sustenta nos símbolos e nos signos literais, como quando um escritor relata exatamente, aqui, o que está acontecendo. Muitas vezes, a realidade é enfadonha e até melancólica. Qual a única saída? A porta do surreal. Às vezes, a realidade é o próprio inferno.  Então, como diria o poeta Antonin Artaud: “Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno”.

 “La Carte de l’Enfer”, de Sandro Botticelli. (timeout.pt)

Mas o que é esse inferno? Atualmente, vemos guerras estourando ao redor do Mundo, chegando perto da América Latina, nos envolvendo economicamente aos problemas dos países de “primeiro mundo”. O inferno é também, por muitas vezes, a cabeça de um indivíduo que se vê totalmente acuado numa situação tremendamente desproporcional ao que se é dito como saudável.

Uma pergunta que fica é: a loucura é social ou subjetiva? Quem enlouquece, enlouquece para escapar de uma sociedade doente ou, simplesmente, a química do seu cérebro estava com defeito? Ainda citando Artaud: “E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de trair uma determinada ideia superior de honra humana. Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.”

Antonin Artaud no asilo de Rodez, em França. (jacket2.org)

O surrealismo é também, exatamente, essa fuga para um mundo onde as verdades mais cruas são consideradas normais. A surrealidade se sustenta entre símbolos e signos que, indiretamente, nos mostram aquilo que estava escondido no inconsciente coletivo; aquilo que o ego tenta suprimir.

Pois claro, é extremamente pertinente dizer que o surrealismo é, apenas, uma fuga para o mundo interior, para a loucura. Porém, há muito para se aprender quando se mergulha em si próprio, você se descobre humano e parte da humanidade inteira, não somente um ser subjetivo completamente fora de si. Você descobre que todos são loucos nos seus movimentos diários de tiques ou rituais (muito comum nos neuróticos). Agora, os psicóticos, vêm o mundo como algo inseparável deles, como um ego que falha ao discernir o que é de dentro e o que é de fora. Há muito a aprender com isso, além do sintoma, a estrutura psicótica se concretiza no outro invadindo o seu próprio espaço pessoal.

Socialmente falando, a civilização de, um modo geral, não se vê a não ser através de um espelho de vaidades superficiais, mas há muito no mundo, seja interior ou exterior, para se descobrir, para além do narcisismo de observar a própria vaidade. O surrealismo entra nisso como uma necessidade de mergulhar profundamente no ser e no mundo, para que se possa entender que todos são um só, com o mundo e com o outro. Daí vem a necessidade do surreal, a de mostrar ao ser humano quem ele é de verdade, mesmo que, às vezes, sem palavras (pois, os signos e os símbolos, muitas vezes, são limitantes).

Pintura “A Persistência da Memória, de Salvador Dalí (1904-1989). (pt.wikipedia.org)

Contudo, você pode estar se perguntando: “O que um monte de relógios derretidos dizem sobre o ser humano?” (Isso no quadro “A Persistência da Memória”, de Salvador Dalí). Pois bem, eu digo a ti que há muito a se aprender com ela. A imagem é fruto de uma ponderação imagética de seu pintor, mostrando precisamente aquilo que ele guardava subjetivamente no seu íntimo e, ao mesmo tempo, toda uma imagem que representa (entre outras coisas dificilmente interpretáveis) a temporalidade e a memória. Coisa que se discute socialmente ou, até mesmo, se é pintada noutros quadros, mas jamais com a profundidade de uma imagem surrealista, porque todo seu íntimo (o que há de mais íntimo nele) foi exposto e transbordado neste quadro.

Por fim, é necessário o surrealismo para que o ser humano ache uma razão para viver. Num mundo cada vez mais consumido pelas doenças e pelas guerras, não somente se escapa por este meio, mas também se cria novas possibilidades de utopia. E para que vive o ser humano, senão pela utopia?

.

01/02/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

Christian Dancini

Christian Dancini de Oliveira é um poeta que nasceu e mora em São Roque, no interior do estado de São Paulo, no Brasil. Aos 15 anos, escreveu a obra “Fragmentos de uma Aurora”, inspirado por poetas como Rimbaud, Walt Whitman, Paulo Leminski, Charles Bukowski e, principalmente, no “Poema Sujo” de Ferreira Gullar. A sua primeira obra foi lançada em 2016, aos 16 anos, pelo projecto Livro Livre do digital “influencer” Iba Mendes. Logo após o lançamento do livro, Christian Dancini juntou-se com Eduardo Agni para fazer o audiolivro dessa mesma obra. Três anos depois, lançou “O Livro da Fragilidade”, inspirado nas suas vivências e problemas com depressão, esquizofrenia, álcool e drogas, e tendo como referência poetas como Hilda Hilst, Pablo Neruda e Herberto Helder. Em 2022, lançou, pela editora EMBUscadasARTES, o livro “Reminiscências”, no qual junta todos os poemas que escreveu na adolescência. Posteriormente, escreveu “Pleroma”, publicado pela editora Ópera. Hoje, aos 24 anos, Christian Dancini segue activo, lançando, em 3 de Fevereiro de 2024, através da editora Patuá, o livro “Dialeto das Nuvens”.

Outros artigos

Share
Instagram