Da poesia, da música e do fim de uma era
Este Verão no fim e mais uma silly season com Covid ultrapassada, ficam na memória, não os grandes festivais, mas algumas mortes no mundo da música. Porque a música e o Verão parecem sempre vir juntos. Uma questão de luz. Só que, este ano, parece que a sombra ganhou terreno.
Desde logo, com a morte de Charlie Watts, dos Rolling Stones, a perda mais recente. Contudo, para alguns e algumas da minha geração, mais do que as recentes, ficou sobretudo a pesar a memória de uma outra, recordada a 3 de Julho. Parece inacreditável que 50 anos tenham passado sobre a morte de Jim Morrison, dos The Doors!
Talvez por o recordarmos (pelo menos, alguns e algumas de nós) como aquele músico que queria, afinal, ser apenas recordado como poeta.
Em 1971, eu era uma miúda e o nosso país, muito mais francófono. Tive a sorte de ter uns primos mais velhos a olhar noutra direcção e assim foi-me dada a conhecer mais uma das vozes que haveriam de me estimular a querer descobrir mais sobre o outro lado do Atlântico, os Estados Unidos.
A maior parte das minhas amigas e amigos norte-americanos costumam rir-se da minha adolescência passada na década de 70. Para eles/as, quase todos/as mais velhos/as, a única década que importa é a década de 60. Por isso, ouço invariavelmente: “The 70s?! Who remembers them?!” (Os anos 70? Quem é que se lembra disso?!). E, também, invariavelmente, lhes conto a aventura que foi viver a poesia nas ruas com uma revolução “a sério” que, sendo sobretudo de ordem política, implicou todas as suas outras formas: a social, a cultural, de costumes e representações.
É difícil comparar as nossas duas revoluções. Sobretudo porque os/as americanos/as — na sua cultura de pretensa abertura total à diferença (que implica, perversamente, a neutralização de todo o potencial transformador, pois toda a diferença se digere e acomoda) — têm muita dificuldade em entender o que é uma revolução “a sério” (embora, ironia histórica, o seu país tenho sido fundado com base numa…).
Para eles/as, aquilo que mais se lhes aproxima é, de facto, a da sua história social na década de 60. E 1971, o ano da morte de Jim Morrison, é o fim de toda essa era revolucionária, que teve a Guerra do Vietnam em pano de fundo.
No pós-II Grande Guerra, com a chegada ao exílio de muitos artistas e intelectuais europeus (sobretudo os expressionistas alemães e os surrealistas franceses), Nova Iorque roubou a centralidade de Paris no mundo das artes ocidental. Mas será sobretudo a especificidade e a diversidade da cultura da costa oeste que levarão à mudança cultural nos EUA.
A Califórnia, mesmo geograficamente, longe dos dois maiores centros difusores de cultura mais europeia de então, Nova Iorque e Boston, tinha, de facto, uma interculturalidade muito diferente da da cultura europeia: a proximidade com o mundo hispânico (sobretudo com o México), a presença de largas comunidades imigrantes vindas do oriente e, com elas, da cultura do ópio (primeiro, os chineses, que vieram para construir o caminho de ferro; e, depois, os japoneses, que haveriam de acabar em “campos de internamento” após ao ataque a Pearl Harbour), uma enorme diversidade de culturas índias (que usavam o peyote e os cogumelos em cerimónias xamanísticas, que jovens brancos se apressaram a querer conhecer) e, sobretudo, essa ligação ao conceito americano de “oeste” e/ou de “fronteira”, terra de liberdade absoluta, espaço de encontro e de fricção em que as leis já conhecidas não funcionam e em que a criatividade se explora em todo o seu potencial excesso. “The west is the best/the west is the best/Get there/and we’ll do the rest” (O que há de melhor é o oeste/o que há de melhor é o oeste/Põe-te lá/que a gente faz o resto”), cantava Morrison, em “The End”.
Não admira pois que o chamado “Renascimento de S. Francisco” (the San Francisco Renaissance), já em ascensão em plena década de 50, atraísse tantos jovens, nova-iorquinos e não só, que, depois, haveriam de ser os principais motores da transformação na década de 60. Nomes da Beat Generation, como Allen Ginsberg ou Jack Kerouac, sairiam de Nova Iorque à procura da arte e da cultura inovadoras que a costa oeste parecia oferecer. A personagem Dean Moriarty do On the Road, de Kerouac, no seu desenraizamento e amoralidade, é uma espécie de ícone que representa toda uma geração — e a figura de Jim Morrison está-lhe bem associada.
Talvez porque representantes da nova poesia norte-americana estivessem na sua génese, como Robert Duncan, Jack Spicer e Robin Blaser (os mentores da, já anterior, Berkeley Renaissance), e também porque esses nomes seriam nomes maiores da resistência ao McCarthysmo e à sua caça aos Vermelhos, a poesia voltou a ser a arte maior.
É hoje muito estranho pensar que, nos bares underground (e não só) da época, os músicos eram chamados para entrar nos intervalos deixados pelas leituras dos poetas. Talvez a razão que levava Jim Morrison a tanto querer ser poeta…
A leitura de “Break on Through (To the Other Side)” (Irromper [no Outro Lado]) faz-se, assim, múltipla: o outro lado do continente, o outro lado de pensamento e da linguagem aceitáveis (que a poesia abre), o outro lado da consciência, o outro lado da vida (a morte).
Tudo isto no que Morrison haveria de chamar “uma terra desesperada”, cujos “filhos/as enlouqueceram” (“In a desperate land”, “All the children are insane”, ouvimos em “The End”).
Já depois da morte do cantor, o teclista dos The Doors, Ray Manzarek, também já desaparecido, percorreu durante alguns anos os EUA, acompanhando o poeta Beat, Michael McClure (falecido em 2020). Conheci o poeta pessoalmente por ocasião de uma leitura de poemas na Universidade de Nova Iorque, em Buffalo. À noite, no Centro de Artes, estaria lá com Manzarek, para mais um desses recitais. Escusado será dizer o quão empolgada fiquei com a possibilidade de vir a ser apresentada a um dos membros dos The Doors… O que não aconteceu.
O recital foi… estranho, para dizer o mínimo. Entre cada poema, acompanhado ao piano, os dois velhos ícones de todo um activismo e de todo um modo de vida alternativos dedicavam-se a tentar convencer aqueles e aquelas jovens do público a estudar e a não usarem drogas.
Claro que não me passaria pela cabeça tentar alguma vez convencer os/as jovens a fazerem o contrário. Mas que a cena era surrealista, era. Aqueles conselhos na boca daqueles dois era, de facto, algo de inimaginável e quase patético.
Acabado o espectáculo, enterrei-me o mais que pude na minha cadeira, esperando que McClure não me visse e/ou não se lembrasse da jovem estrangeira que tinha conhecido esse dia na Sala de Poesia e Livros Raros. Os/as meus amigos/as americanos/as estavam todos/as em pé, não a aplaudir, mas a berrar em plenos pulmões: “It’s over! It’s soooo over!” (Acabou-se! Está tuuuudo acabado!)
Sim, a morte de Jim Morrison foi o fim de uma era. Mas, estranhamente, ou talvez não, com todo o desespero e todo o caos que ela implicou, apanho-me a desejar que os Estados Unidos da América recuperem a enorme vitalidade e a loucura criativa de toda aquela geração. De toda aquela luz no meio das sombras.
15/10/2021