De Beckett a Pimenta

Por razões que a pandemia explica vejo-me em trabalhos de pôr em cena Jogo do fim, de Samuel Beckett, em tradução de Isabel Lopes e Discurso sobre o filho da puta, de Alberto Pimenta. Impedidos de fazer, Teatro da Rainha, A Ilha dos escravos, de Marivaux, no Parque Dom Carlos nas Caldas, avançamos para uma alteração de escala de O discurso do filho da puta que, de leitura encenada, passa a montagem “regular”.
Não me passara na cabeça uma relação entre os dois textos. Jogo do fim — Endgame em inglês, Fin de partie, em francês, língua em que foi parida —, era para Beckett a sua melhor peça; Discurso do filho da puta vai na sexta edição — a criatura dissecada com precisão ortográfica e sintaxe requintada, é o retrato amplo de um tipo português e universal que o arrivismo e oportunismo, doenças endémicas e escola oficial, ajudaram a formar.
Pimenta evidencia-lhe, de modo escandalosamente humorado, circunstâncias de manobrar, lugares que ocupa e modos de agir. O filho-da-puta (não sei se perdeu os hífens com o AO, mas nunca teve os três) que Pimenta exibe em protagonista vai ficando sem máscara ao longo do ofício textual e mostra-se finalmente tão ao natural como o mexilhão, visível, alvo potencial e como é na verdade: amplamente medalhado e manco de virtudes.
A relação entre os dois textos existe, pelo menos em dois planos: no esquema da repetição/variação, estruturante nos dois e na sacanagem: Hamm, a personagem central de Jogo do fim, é um FDP, Clov, o parelha, é um fdp — a humanidade não escapa à filha da putice.

E se o discurso de Pimenta é apimentado e na retórica de tratado “científico” estrutura um caminho de identificação de práticas para captar a figura de todos os ângulos com o bisturi da minúcia, é em pleno elogio fúnebre que entra em pane: as frases abortam atacadas pelo vírus de uma falta súbita de sentido, o que vem de dentro da própria língua e se instala na e pela repetição, no caso do texto de Beckett desenvolve-se uma circularidade labiríntica ordenada a partir de uma repetição desmemoriada dos atos entre os performers sujeitos em cena, isto é, que resulta da rotina da imobilidade que ativam no interior de um dispositivo maquinal, condicionador, que começa nas próprias limitações de corpos e mentes e só escapa à repetição para variar a ficção de que há um avanço na narrativa e se cria a ilusão de uma passagem do tempo — o tempo é a tragédia que têm de gerir no guião que o “grande costume” lhe lega, de senhor e escravo, é o tempo que joga com eles o Jogo do fim que não vem.
Um democrata de última hora que na revolução de Abril — grande escola — se formou em sacanice sofisticada e eleitoral — democracia oblige!
Em ambos os casos — Hamm (um FDP sofisticado) e FDP, o amplo espectro figural — eternidade e glória assinalam fitos de viver e portanto, tudo contribuem, para um caminhar de vida que o final assinale em glória — para o FDP pimentino o Panteão, para Hamm a fama de um romance que o faça autor num céu de obras primas mesmo que à venda numa sucata alfarrabista.
E se a experiência Beckettiana tem por referência não expressa um fim do mundo ensaiado em Hiroshima, a partir do Holocausto ou mesmo da longínqua revolução industrial com o seu cortejo de famintos — referência móvel —, o FDP que Pimenta escalpeliza, protótipo daquele que singra por vias ínvias sacaneando o próximo (José Gil chama-lhe chico-esperto e Jorge de Sena sacana), revelando-se um tipo muito típico do regime da velha senhora (delator, pide, o que trai, torturador, o das comissões, o que manobra, o que trama emboscadas em proveito próprio, o da seita, o do nepotismo, o arrivista, o da facada nas costas) é também claramente um democrata de última hora que na revolução de Abril — grande escola — se formou em sacanice sofisticada e eleitoral — democracia oblige! — e que aí anda, ativo, a formar partidos e engendrar tentativas de um totalitarismo de novo tipo à boleia da sociedade do hipercontrolo e consumo de massas.