“De Moçambique, com amor”

 “De Moçambique, com amor”

(Direitos reservados)

A minha passagem por África – “passagem” será um termo desajustado, dado que África, entranha-se-nos e fica em nós –, mais concretamente, os anos vividos durante parte da minha infância e adolescência, em Moçambique, ter-me-ão dado, já então, a noção da imensidão real do Mundo, feito de muitos mundos, diferentes daquele a que, com muita facilidade, chamamos nosso e a que, numa perspetiva mais intimista e egocêntrica, talvez possa chamar meu.

Tudo isto não passa de uma ilusão. O Mundo é o mesmo, o modo de vivê-lo é que é diferente. Penso, pois, que dentro do Mundo cabem muitos mundos, existindo, contudo, uma linha comum e contínua que os une. Essa linha tece e entretece a Humanidade. É por ela que caminhamos para sermos verdadeiramente humanos, para promovermos o ser-se humano e, quantas vezes, tornar-se humano.

Talvez esta consciência e a saudade dos lugares que outrora ocuparam e divertiram os meus sentidos, ensinando-me a verdadeira essência da diversidade cultural, tenham contribuído para a criação de histórias, como a de um pássaro gigante que voa e atravessa o mar com uma bola mágica ­– tão mágica como os sonhos da pequenada, aqueles que habitam no seu brincar –, levando-a até outros meninos, que a recebem felizes, do outro lado do mar. Noutra ocasião, sentada em frente da meiga ondulação do mar do nosso Sul português, escrevi num pequeno poema, estes versos:

Lá longe no mar azul / Vai um barquinho à vela / E os meus olhos presos nela / Uma gaivota me diz / Que aquele barquinho branco / Leva pressa de chegar / À esperança de uma criança / Do outro lado do mar.

Quis o curso inesperado e surpreendente da vida, que fosse eu, mais uma vez, a chegar ao outro lado do mar. Não sob a forma de bola, tão-pouco de barco, não de criança, como outrora fora, mas através da poesia.

Como aconteceu?

Na cidade de Pemba, mais especificamente no Bairro de Mahate, em 2022, nasce o Projeto Karibu, com o objetivo de promover a integração escolar das crianças deslocadas internas, provenientes do conflito armado que tem vindo a ocorrer na província de Cabo Delgado, desde 2017.

(comprasolidaria.pt)

Implementado pela organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD) Helpo (*) e financiado pelo Instituto Camões I.P. e pela Fundação Galp, o projeto já apoiou, diretamente, mais de 600 crianças, com material escolar, alimentação, documentação, roupa e uniformes, além de criar condições para o acolhimento dessas crianças (com a construção de seis novas salas de aula, a reabilitação de casas de banho de uma das escolas e a construção de uma biblioteca comunitária), nas duas escolas de Mahate.

Foi neste contexto que tive a ventura de, solidariamente, dinamizar uma oficina de poesia, a qual decorreu ao longo de quatro sessões online, junto de crianças de várias idades, na sua maioria deslocadas internas, vindas de Cabo Delgado, lugar de conflitos sangrentos que assolam Moçambique, há demasiado tempo.

Muitas das crianças com as quais interagi, mal sabiam Português. O dialeto com o qual cresceram também não é o mesmo que encontraram em Pemba, para onde foram deslocadas. Existiram, pois, muitas dificuldades na comunicação, mas elas nunca desistiram e eu também não.

Como elo fundamental, participou igualmente um ser humano inexcedível na sua dedicação, tenaz e resiliente, sempre cuidadoso e cuidador da dor e dos traumas daquelas crianças. Chama-se Leandro Martins e é, até ao momento, voluntário da Helpo. Também ele viu a sua casa e Missão serem queimadas na aldeia onde vivia, junto da comunidade, em Cabo Delgado, na qual pretendia desenvolver um projeto humanitário.

Tudo foi destruído, num voraz e selvagem ataque feito pelos insurgentes. Nenhuma família regressou mais àquele lugar. Muitos viram os seus entes queridos serem engolidos pela fúria da maldade humana. Ele próprio se viu na circunstância de ser um de deslocado interno.

Voltemos a Karibu.

Voltemos à oportunidade de atravessar mares e de estar em contacto com crianças, em Pemba, capital da província de Cabo Delgado, na costa nordeste de Moçambique. Tudo, diga-se em abono da verdade, graças às possibilidades que nos oferecem, hoje, as novas tecnologias de informação e a Internet, em particular.

Projeto Karibu. Uma biblioteca comunitária. Crianças e jovens com muita vontade de aprender. Um workshop de poesia. Nós à distância.

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Como chegar àqueles seres, com o(s) seu(s) próprio(s) mundo(s), feito(s) de lágrimas e de sorrisos? Feitos de um presente no qual o passado está, dramaticamente, gravado e se projeta, simultaneamente, o sonho de um futuro melhor?

Levei-lhes poesia. Selecionei cuidadosamente os poemas que lhes li.

Levei-lhes palavras e quis que percebessem que as mesmas têm corpo e alma. Têm vida própria, para além dos ditames da gramática. Têm cor, movimento, sonoridade. São capazes de criar ritmos, musicalidade, e de se projetarem no papel ou de viajarem na mente, com uma existência inesperada.

Algumas palavras dançaram nas folhas, outras voaram pelos céus. Creio que muitas brincaram às escondidas dentro da biblioteca. Várias choraram e depressa se transformaram em preces, em orações eivadas de sagrado, como o são a vida, a família, o amor, tal como também são a tristeza e a alegria, a perda, o medo ou o reencontro.

Pedi-lhes que imaginassem e libertassem as palavras. Palavras como “pássaro”, “mar”, “peixe”, “liberdade”, “montanha”, “rio”, “amizade”, “mãe”, “escola” e tantas outras. Tantas foram as que me ensinaram. Pedi-lhes que deixassem que as palavras casassem com enlevo as suas almas, o seu ser (o meu cérebro trabalhava a duas velocidades: dizer o complexo, numa linguagem simples; dizer depressa, pausadamente). Palavras. Umas foram abandonadas, deixadas num qualquer lugar esconso da memória, outras agarradas com avidez, como se de pão se tratasse. É compreensível. Quando se escreve, a empatia com as palavras é tão necessária como o sal que tempera a vida.

Passo a passo, comandados por um tempo muito escasso e dilatado, paradoxalmente (entenda-se que o tempo tem uma dimensão própria para cada ser e cada lugar; não coincidem, é certo) os textos foram chegando. Eu lia-os e insistia que podiam ser melhorados, “aqui” e “ali”.

Em determinado momento, dei comigo a pensar que iríamos perder o “fardo”. As crianças não estavam a escrever poemas. Eram pequenos fragmentos em prosa, remendando pedaços do seu passado recente e, sobretudo, costurando os sonhos do presente. Mas aqueles textos que me iam chegando, estavam plenos de sentimentos, de emoções, de ambições. Eram de gente a crescer. A crescer em todos os sentidos, incluindo na aprendizagem da língua portuguesa.

Nova sessão, novos textos. Escritos em casa, na biblioteca, no silêncio que respondia ao meu chamamento. Meu e do Leandro. Já havia laivos de poesia. Rasgos de poemas.

Passo a passo. Sem desistir.

Conheci novos casamentos e enamoramentos de palavras. Todas cheias de vida, com histórias dentro. Grávidas.

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Nasceu, assim, um livrinho, escrito pelas vinte e uma crianças, participantes nesta oficina de poesia e beneficiárias do projeto Karibu. “Dentro de nós”, então, lhe chamámos.

Todas as crianças e jovens aprendizes de poetas o receberam e exibiram orgulhosamente.

Um pedaço deles e delas vive dentro daquele livro.

Afinal, mesmo no caminho árduo e difícil se encontra o prazer e o esforço recompensado. Quiçá, uma nesga de felicidade ou o Mundo inteiro.

………………….

(*) A Associação Helpo é uma organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD) que desempenha a sua atividade, desde 2008, em Portugal, em Moçambique e em São Tomé e Príncipe, para a promoção do desenvolvimento, através da educação e da nutrição. A Helpo desenvolve a sua atividade em comunidades rurais, participando na construção de escolas, de bibliotecas, de creches, de centros de nutrição, de cantinas escolares e de sistemas de aproveitamento de águas pluviais, a par da formação comunitária, da educação para a saúde, da assistência e da formação contínua, financiando as suas atividades através do Programa de Apadrinhamento de Crianças à Distância, de donativos livres e de projetos financiados por agências internacionais.

17/11/2022

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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