De Penha Garcia a Monsanto
Um destino de infinitas histórias para contar e recordar
Os dias que se aproximam serão, certamente, de ócio para muitos. Época propícia para redescobrir locais comuns ou descobrir sítios incomuns. Entre vales, chãs e planícies, montes, serras e montanhas, riachos, ribeiras, rios, lagos e lagoas, ou junto de um qualquer oceano, decerto que cada um procurará encontrar-se num lugar, naquele lugar. Naquela praia, cidade ou recanto no campo. Repor energias. Renovar objetivos, projetos, sonhos. Sugestões não faltam. Contudo, em tempos em que o tempo é de uma nova Era e em que todos nós tivemos de adaptar a outros modos de vida fomos ao encontro da natureza.
E tal como todas as histórias, qualquer narrativa, também esta não poderia começar de outra forma. Era uma vez, em tempos idos, uma formosa jovem, Branca de seu nome. Filha do poderoso governador de Monsanto. A bela moça arrebatou o coração de D. Garcia, alcaide do Castelo do povoado vizinho. Perdido de amores raptou a amada. O pai de Branca não admirou a ousadia. Capturou D. Garcia e condenou-o à morte. Devastada, a amada suplicou por misericórdia. A pena de morte acabaria substituída por a amputação de um braço. O “decepado”, como viria a ficar conhecido o alcaide, reza a lenda, ainda hoje vagueia pelo Castelo de Penha Garcia e penhascos da região.
Foi nesta atmosfera, que oscila entre a paixão, o encantamento e a tragédia, que demos início a uma viagem pelo fértil território do concelho de Idanha-a-Nova, no distrito de Castelo Branco, sobretudo ao nível de vestígios pré-históricos e romanos. Destaca-se, ainda, todo o enquadramento natural e paisagístico onde é visível a harmonia e o respeito entre os diferentes ecossistemas.
Começámos por percorrer as ruas empedradas de Penha Garcia, aldeia do interior raiano, já bem perto da fronteira com Espanha, até alcançarmos o altivo Castelo, que, ao tudo indica, terá sido construído no reinado de D. Sancho I, segundo Rei de Portugal, para ajudar a proteger a fronteira portuguesa das investidas do Reino de Leão.
Há nesta terra algo de imutável e sedutor. Uma certa presença da imortalidade. Um enlaço que nos desliga do frenesim das vidas agitadas indiferentes às ficções do interlúdio, à glorificação da ociosidade. Local propício ao reencontro com nós próprios, com o silêncio. Desvendar antepassados. Olhar o horizonte.
A Virgem do Leite ampara, desde o século XV, os locais e visitantes a partir da Igreja Matriz. O fantasma de D. Garcia, certamente que ainda em nome do seu eterno amor à jovem Branca, assegura proteção a quem se aventura pelos cerca de três quilómetros da Rota dos Fósseis – que pese alguns declives é acessível a quase toda a gente. Confirmamos por aqueles trilhos que se fossemos a plenitude de nós mesmos poderíamos, certamente, ter a capacidade de alcançar a grandeza daquela paisagem, daquele concreto imaginário. Retratar sossegos e desassossegos de conforto e desconforto. Desvendarmos segredos com quase 500 milhões de anos! Contudo, tentámos. Uma herança que nos foi deixada há infinitas gerações e que se impõe a cada um de nós preservar para a delegarmos às vindouras.
As rochas das escarpas e arribas que amparam o rio Pônsul – que nasce detrás da alta crista quartzítica de Penha Garcia na Serra do Ramiro, vindo a desaguar no Tejo junto de Monte Fidalgo, entre os concelhos de Castelo Branco e Vila Velha de Ródão, perto de Perais e Malpica do Tejo – protegem um inigualável e riquíssimo espólio de icnofósseis que remontam à Era Primária ou Era Paleozóica. As rochas expõem uma abundância de vestígios dos seres bizarros que à época habitavam o leito marinho que ocupava aquela região. Estas marcas gravadas nos penedos retratam as movimentações das trilobites, criaturas marinhas que por ali viveram muito antes de os dinossauros povoarem o planeta. No período em que ainda todos os continentes estavam ligados em torno do Pólo Sul e os mares eram habitados por organismos invertebrados que se deslocavam nos substratos arenoargilosos, deixando marcas nas rochas que se foram sedimentando.
Estas “cobras pintadas” ou pedras escrevidas”, como as batizaram os habitantes locais deslumbram qualquer olhar. E numa observação mais atenta, todo aquele percurso é muito mais do que um mergulhar pela cronografia da natureza daquela região, é também ter contacto privilegiado com histórias de sobrevivência e resiliência dos habitantes que ao longo de séculos foram habitando o lugar a partir do momento em que se tornou possível povoá-lo.
A euritmia que é visível entre as pessoas locais e todas as áreas envolventes decerto não foram indiferentes para englobar a região no Geopark Naturtejo, pertencente à rede de geoparques da Unesco e que abrange sete concelhos da Raia à Beira Interior, passando pelo Pinhal Interior até ao Alto Alentejo: Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Nisa, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão
Pônsul: rio de pão
Os vestígios da ocupação humana prolongam-se pela encosta da serra de Penha Garcia. Este terá sido inicialmente um povoado neolítico, depois transformado num castro lusitano e, posteriormente, uma vila romana. Além da localização privilegiada em termos defensivos, as riquezas naturais da região eram também uma das suas grandes atrações. O leito do rio Pôsul seria opulento em ouro. Atualmente encontramos pelas margens, ao longo do percurso da Rota dos Fósseis, velhos moinhos de rodízios, entretanto recuperados. Serão apenas uma parte do que terá sido um dos maiores aglomerados de unidades moageiras do país, tendo, por isso, o Pônsul ficado conhecido pelo “rio de pão”. Retrato dos tempos. Há, no entanto, uma atmosfera que parece manter-se. A pureza do ar. A transparência e frescura das águas. O vigor das matas. A abundância e diversidade das aves – algumas raras – e de outras espécies animais. A fertilidade dos campos. A genuinidade e simpatia das gentes que vivem ao ritmo da natureza.
Não contámos o tempo, porque aquele é um lugar onde o tempo não tem hora. Quando passámos pela Gruta da Lapa, ou Gruta dos Morcegos como também é conhecida, sentámos-nos a sentir, simplesmente, o meio envolvente. A leveza de 500 milhões de anos de História. Seguimos. Parámos. Perseguimos. E na Piscina Natural do Pego refrescámos a alma e o corpo.
Deixámos aldeia ao início da tarde onde poderíamos ter cedido aos sabores de quem por ali cozinha segredos herdados há gerações. Optamos por passar para a outra margem do rio. Apreciar a beleza das matas, árvores seculares e paisagens rurais. Percorrer caminhos e atalhos em asfalto e terra batida e, bem perto da Barragem de Penha Garcia, estender as mantas e toalhas junto à margem do rio e fazer um piquenique entre os cheiros a pinheiro, azinheira, sobreiro, medronheiro, zimbro, esteva, urze, rosmaninho e alecrim, certamente com algum coelho à espreita, ou mesmo algum veado ou raposa.
Nada se compara à magia de um piquenique. Ao prazer de degustar em família, ou entre amigos, e até na companhia dos animais de estimação, no caso um cachorrinho, as iguarias caseiras. Que o digam as borboletas, as águias imperiais ibéricas, as águias-reais, as cegonhas negras, as cegonhas brancas, os falcões peregrinos, os melros-azuis, os rolieiros, os rouxinóis e as poupas que podemos, inclusive, ouvir cantar ao desfio, ou até mesmo umas formigas mais atrevidas, umas lontras mais tímidas ou uns sapos parteiros, entre outros insetos, aves, mamíferos ou anfíbios que por aquela região testemunham quem procura as sombras das árvores junto da frescura das margens do Pônsul para retemperar energias e saborear uma refeição ao ar livre.
Além de que, também não fomos em dias de Bodo. Caso contrário, poderíamos termo-nos juntado aos comensais em Salvaterra do Extremo ou em Monfortinho, aldeias também elas dignas de visita (como praticamente todos os lugares que pertencem ao concelho de Idanha-a-Nova) para comprimir uma tradição secular em agradecimento a uma graça dada por Nossa Senhora da Consolação.
Corria o ano de 1876 quando uma praga de gafanhotos assolou os campos e as searas da região devastando todas as culturas. No ano seguinte a praga voltou deixando o povo condenando à fome e miséria. Desesperada, a população de coração nas mãos e olhos erguidos para o céu suplicou proteção a Nossa Senhora da Consolação a quem fizeram uma eterna promessa de uma vez por ano oferecer alimentos a todos quantos aparecessem nas aldeias e de fazerem uma festa em sua homenagem.
O contrato sagrado nunca foi quebrado pelo povo e, assim, anualmente, no dia seguinte à Páscoa em Salvaterra do Estremo, e duas semanas depois em Monfortinho, centenas de pessoas, entre locais e forasteiros, incluindo muitos espanhóis, juntam-se em torno de mesas abastadas onde não faltam, entre outras iguarias e dependendo da localidade, a sopa de grão, a canja de galinha, o arroz de carne, o ensopado de borrego, a chanfana, os tradicionais rins, vinho, pão e bolos. Alimentos oferecidos e confecionados pela população em panelas de ferro em plena rua. Ninguém necessita de fazer reserva. Basta chegar e juntar-se ao Bodo que é servido depois da procissão em honra da padroeira.
Em “cada manhã em Monsanto nasce o mundo”
Partimos depois para percorrer outros caminhos. Veredas por onde os amantes do Boom Festival – festival internacional de música e cultura autossustentável que de dois em dois anos se realiza por terras de Idanha-a-Nova – também vagueiam quando procuram por estes lugares inspiração para se exprimirem através das mais diferentes formas de arte.
Chegamos a Monsanto, aldeia situada entre o sopé da Serra da Gardunha e o rio Pônsul. Encontrámos o Ricardo. Terá herdado da avó o gosto por contar histórias. E mesmo quando a um conto se acrescenta um ponto, as lendas não perdem o encanto, o seu mistério. Contou-nos que, segundo reza a lenda, há muitos, muitos anos, uma jovem mulher na hora de dar à luz, desesperada ao ver que poderia perder a criança fez um pacto com o Diabo. O menino nasceu saudável e, assim, acabou por ter de lho entregar. O Diabo ao sobrevoar o sopé do inselberg de Monsanto, perto da aldeia do Carroqueiro, com o bebé preso nas garras terá sido avistado por Santo Amador que suplicou aos céus que libertasse a criança. As suas preces foram ouvidas e o recém-nascido acabaria por cair junto do ermita que vivia numa gruta. Todos os dias uma corça deslocava-se ao local para amamentar a criança que cresceu e foi educada por Santo Amador.
A Capela de São Pedro de Vir-a-Corça, construída no século XIII, deverá o seu nome a esta lenda. Este é hoje um lugar de meditação, de silêncios, de paz e, ainda, um dos poucos legados do românico religioso em Portugal.
Monsanto é tida como a aldeia mais portuguesa de Portugal. Em 1938 António Ferro distinguiu-a com o “Galo de Prata”. Em 1995 passa também a integrar o conjunto das 12 aldeias pertencentes à rede das Aldeias Históricas de Portugal.
É uma localidade onde todas as pedras parecem ter uma história para contar. Além das pessoas, é claro. Ficaríamos por ali perdidos, ou não, no tempo. A vaguear por ruas e ruelas. Em direção ao Castelo medieval que fica um pouco mais perto do céu, mais próximo do expoente máximo deste paraíso. Pelo caminho vamos encontrando aglomerados de casas de onde as portas irrompem, tal como nos contos de fadas, esplendorosas, de enormes pedregulhos de granito. Em muitos casos, um único bloco de pedra forma o telhado ou uma parede da habitação.
Fernando Namora foi ali médico e por lá terá escrito páginas de alguns dos seus livros, eventualmente, até, do “Retalhos da Vida de um Médico”. Da aldeia dizia que em “cada manhã em Monsanto nasce o mundo”. Aquele é um lugar de inspiração de poetas, escritores, pintores, escultores e de todos os artistas no geral. Também de resistência. Histórias relatam que a povoação terá resistido durante sete anos ao cerco feito pelos romanos no Século II a. C. Com perícia, coragem e criatividade a população conseguiu fazer com que os romanos se retirassem.
Os habitantes do povoado apesar de sofridos e das muitas baixas não se rendiam. O velho chefe da aldeia já tinha perdido todos os seus filhos e apenas lhe restava uma filha e a esta um rebanho bezerros. Queria que fugisse e se pusesse a salvo com o gado. A jovem recusou e ainda distribuiu os animais pelo povo para os alimentar por mais uns dias.
Os romanos estavam a perceber que os aldeões estavam a ficar sem comida e exigiam rendição, mas a jovem disse ao pai que guardara uma bezerra gorda que os salvaria. Chegou ao cimo das muralhas e com uma bravura que a todos surpreendeu, gritou aos romanos que não se renderiam porque ainda tinham muita comida. Como prova disso, atirou-lhes a bezerra. O cônsul romano, cansado de tantos anos de guerra, resolveu levantar o cerco e regressar a Roma.
Em homenagem a este feito ainda hoje, anualmente, no dia 3 de maio, realiza-se a Festas das Cruzes, As mulheres sobem até ao Castelo a tocar adufes e a cantar. Ali chegadas, do alto das muralhas atiram um pote florido, simbolizando o gesto de lançar a bezerra aos cercadores.
Será difícil deixar esta aldeia, tantos são os tesouros que ali encontramos e dali avistamos. Um património riquíssimo. Natural, edificado e humano. Obrigatório é sempre passar pelo forno comunitário e, ainda, ver como se fazem as marafonas. Bonecas de pano que têm uma base em madeira em forma de cruz e às quais é atribuído o poder de proteger as casas contra as trovoadas. Devem ser colocadas em cima das camas. Também há a tradição de serem oferecidas aos noivos para que sejam colocadas debaixo dos colchões na noite de núpcias para desejar sorte ao casal e fertilidade à mulher. Não resistimos e compramos uma. Pareceu-nos que a proteção de quem preserva memórias e mantém o nosso imaginário crente com tanto amor e paixão nunca é demais.
26/07/2021