Desconstruir a ruína
Falava-me um amigo da desconstrução. E só vejo ruínas em marcha acelerada. Claro que as interpretações são sempre construídas. Muito ou pouco, não se aplicam como a chuva ao chão sedento. Não existe luva que seja a mão, como não há mapa que coincida com a realidade – a essa ambição falta escala braçal, mesmo que fabril. São projecções. Já o sangue que corre é objectivo e aduba a terra, concorrendo com a neve que se derrete. Os novos deserdados, que se somam em lugares de ninguém, enfileiram-se ordeiramente, fazendo prova de existência com os carimbos que trazem cuidadosamente protegidos por bolsas de plástico.
O campo tem mais que duas versões. À do trabalho escravo sempre se somou a das máquinas de morte, indústria bárbara a que a ciência deu a mão mais os seus cientistas obcecados. O campo em versão “light” é o mapa abrangente, o todo que acolhe e não acolhe a soma dos deslocados. Dois pesos e duas medidas são vocações genéticas, se a genética for essa coisa que resulta de um apuramento do pior ao longo de séculos, como uma língua – agora, em degeneração digital. O que também a ciência estimulou e praticou, procurando uma inteligência superior. O que dá estes “benturas” e estes “penes” e estes “órbans” e estes “salvinis” e estes “putines” que os pariu e outros que nem apelidos têm bem globalizados. O que igualmente o “bentura” não tem, criatura de bairro que quer ser “bairreuropista”. Mas quem manda é o Banco Central, é aí que está o armamento por vir, esse futuro que ri.
O campo está por todo o lado, morre-se no mar alto, na berma, à babugem; morre-se na estepe coberta de gelo; morre-se nas próprias pernas, que cedem à última respiração, sabe-se lá onde – há pouco, li o “Vidas Secas”, do Graciliano Ramos: uma outra guerra que aqui anda agora, imaginem, no Algarve.
As máquinas não param. Não começaram ontem. São engrenagens de morte muito afinadas, ao longo do tempo necessário para as tornar sublimes, motores perfeitos, grandes equipamentos, como pianos sem alma, em que as teclas sejam balas coloridas do que for; roupagens de arco-íris sempre iludiram os tolos. Há balas para todos. Nem por isso o trigo cresce para baixo, é preciso engordar o ganso para extrair o paté. Com o caviar passa-se de outro modo, o esturjão elabora a sua ova autonomamente, não o faz em recinto cercado, por isso extingue-se; o que será um destino geral do que é mercadoria excelsa, como o tal humano, o animal mais valioso e desprezado; barato, mais barato que o caviar; e muito caro, como são os acompanhantes de luxo e os automóveis que sonham ser aviões privados. E os banqueiros, o próprio despesismo chupista no topo da pirâmide ou do bolo, se preferirem.
O que é treinado ou se autodeterminou para explicar a morte num ofício, numa “newsletter”, num “paper” universitário, num comentário livre, numas rimas poderosas, está a pôr o seu ovo no ninho supostamente geral; as coisas caem no que é controlado por muitos polícias e os exercícios são sempre narcisos. Mesmo quando os espelhos estão todos rachados ou doentes desse vírus acomodado e chamado de troca-tintismo. Anda aí muita merda de braço dado, alegre de antecipações e de previsões, a que faltam os tomates muitas vezes; o que não é próprio da merda, mas coisa de quem tem cu tem medo.
O campo está por todo o lado, morre-se no mar alto, na berma, à babugem; morre-se na estepe coberta de gelo; morre-se nas próprias pernas, que cedem à última respiração, sabe-se lá onde
Isto está tudo engrenado, com uma malha tão capilar quanto um delta sem cursos identificáveis, tais as sobreposições e enxertias, sistema de vasos sanguíneos composto de camadas esquecidas umas das outras; só as de cima luzindo; um silêncio a funcionar como pele dupla de um coro geral de dor e esperança arfando. Só deixaremos de borrar a pintura quando houver o que limpe esta tralha acumulada de séculos; e quando o mesmo que a acumulou se redima pela superação do erro – uma terra que se regenere e de onde surja a vegetação que suprima este ar apodrecido que não tem fronteira.
O que parece estranho é termos chegado assim a um fim, ao fim, a este fim que se parece hoje com um fim previsível, na ordem do dia. É o que para aí se escreve.
O que quer dizer que é sem fim, este fim, que se conta pelos próprios dedos, por muita ciência longeva que se tenha de cardápios e laboratórios. A grande ciência é a de como matar com mais requinte, progredindo na excelência do pior – é o que são os carros, os plásticos, as sementes transgénicas e o lítio; até o lirismo pode poluir. Afinal, quem são estes humanóides? Os mesmos em toda a parte.
E como se desconstrói a carne? De que modo é que antropofagia é uma realização civilizacional, como dizia Oswaldo de Andrade, imaginando-se a comer a melhor literatura de vanguarda? Em que difere de outras formas de matar? Na quantidade. Há mortes massivas muito bem urdidas, como sabemos, bem fabricadas. Assim como sabemos que a figura do Muçulmano – citada por Giorgio Agamben, no seu “O que resta de Auschwitz?” – essa aproximação do humano, era a realização do zombie, a sua criação em laboratório humano, uma finalidade. Painéis de desgraçados a morrer num espectáculo em que uns aplaudem e outros choram. É o grande desporto, a grande competição. O que está em jogo de jogo é muito, não parecendo. Apostam sempre no que pode ser aperfeiçoado para a próxima, os anos de intervalo, sejam os que forem.
Estranho, nesta coisa da desconstrução, é que ela é velha como o cagar, mas só como moda se impôs, para explicar o que compreendemos com uma subtileza reconhecível entre desconstrutores com cartão urbano que comem mesmo no umbigo do centro, onde são as caixas-fortes da boa corrupção.
Eu cá ainda não entendo as interpretações de caldo verde, as exegeses da carne de porco à alentejana, a metafísica da açorda em cama de coentros arrependidos, o espargeute descosntruìdo à bolonhesa, o silêncio de umas trufas imitantes daquele intra-bosque, enfim, o que nos torna felizes. É tudo uma questão de fome e de alimentação. Caçadores e colectores ainda em busca de uma “Grand Finale”, como na ópera cómica cósmica.
11/03/2022