(Des)fazer atualizações

 (Des)fazer atualizações

Créditos fotográficos: Vadim Tashbaev (Pixabay)

O trabalho já passou por inúmeras mudanças, sempre está a ativar seu mecanismo mutante. O taylorismo, o fordismo e o toyotismo, entre tantos outros métodos de organização. Atualmente, fala-se muito em flexibilidade, com a pandemia de covid-19, o trabalho ganhou uma nova roupagem, o chamado teletrabalho. Somos cada vez mais uma sociedade digital.

Vertiginosamente, cresce o número de dispositivos móveis espalhados pelo planeta. A empresa GSMA é uma organização que representa os interesses das operadoras móveis em todo o Mundo e possui um rastreador em tempo real. Segundo esta métrica, o número de telemóveis supera o de seres humanos. Cabe ressaltar que as projeções indicam que, ainda em 2022, a população humana seja de aproximadamente oito mil milhões de indivíduos.

(TudoCelular.com)

Para além do crescimento exponencial dos dispositivos móveis, outro fenómeno que chama atenção é a “simbiose” que estabelecemos com tais aparelhos. O telemóvel, hoje, oferece uma gama de opções que nos torna dependentes. Talvez o termo “celular”, utilizado em muitos países, faça mais sentido; é tão presente nas nossas vidas que, para muitos, configura-se como uma extensão do corpo.

Às 23h55, a luz do ecrã do telemóvel irrompe no breu do quarto. É do grupo do Zap da firma, leio atento. Já fico a imaginar como resolver essa demanda. Demoro para adormecer, sonho com o trabalho. Antes de o despertador tocar, entre idas e vindas da casa de banho, percebo mais notificações do trabalho. É sabido que a luz emitida pelos dispositivos móveis atuais, influencia no ritmo circadiano humano, desregulando os padrões de sono. Seria um erro tão crasso sair do grupo de mensagens da firma? Estou desapontado com o desempenho do meu telemóvel, é assim mesmo. Resigno rapidamente, o meu é o 7, já estão no 14 XPTO.

Créditos fotográficos: Alterio Felines (Pixabay)

Nestes tempos, em que enfrentamos um vírus nefasto e estivemos em isolamento, há quem diga que se não existissem os dispositivos móveis, morreríamos de tédio e não propriamente da doença. Nos adaptamos, enquanto “corpo dócil”, como observa Michel Foucault. Achamos uma frase para nos consolar: “novo normal”. Sessões assíncronas, sessões síncronas…  Apressadamente, arrumo a cozinha, lavo a louça, varro e passo o pano no chão, o sininho toca, tenho uma reunião no Zombie. O teletrabalho infectou os nossos lares, antes de termos a profilaxia. Seria um erro tão crasso atrasar o pagamento da operadora de telecomunicações?

Depois de alguns e-mails e de quase uma hora a falar, numa chamada (paga por mim) com o telemarketing da companhia, trocaram o router lá de casa, a Internet segue vagarosa e cara.

Nómadas digitais na Ponta do Sol, na Madeira. (© RTP)

Mesmo que seja altamente desenvolvido o mais apurado sistema tecnológico, há um facto intemporal. Onde quer que exista trabalho, é intrínseco e imperativo, necessitamos do trabalhador, da trabalhadora. Esses trabalhadores normalmente vivem em crise; quer seja antes, durante e depois de pandemias ou de guerras, o salário para maioria, não resiste até ao final do mês.

Na contemporaneidade, os trabalhadores, além das suas responsabilidades, tacitamente são obrigados a ter um smartphone com um pacote de dados ilimitados, bem como Internet de banda larga nas suas casas. Assim, devido a onipresença dessas ferramentas, os trabalhadores estão disponíveis 24 horas por dia perante o seu empregador. Como corrobora Zygmunt Bauman, “o velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal desapareceu”. Ou seja, “estamos permanentemente disponíveis, sempre no posto de trabalho”. Seria um erro tão crasso sindicalizar-nos?

Funcionários da Google LCC formam um sindicato não tradicional. Chewy Shaw, engenheiro da multinacional Google, participa numa reunião com sindicalizados em videochamada a partir da sua casa em Fremont, na Califórnia, em 2020 (Damien Maloney / The New York Times – https://www.nytimes.com/2021/01/04/technology/google-employees-union.html).

Concluindo, este texto não é uma ode ao offline, tampouco contra a tecnologia, pois, caso houvesse algum dos dispositivos atuais na época de Marcus Licinus Crassus[1], o erro poderia perder o adjetivo ou o qualificativo.

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NOTA:

[1] Político romano, ansioso para lutar contra o Império Parta, ignorou as informações táticas e geográficas do terreno, apesar da superioridade numérica de seu exército, obteve uma derrota vergonhosa.

24/10/2022

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Guilherme Teixeira

Brasileiro de São Leopoldo, no estado de Rio Grande do Sul. Vive na Covilhã (em Portugal) desde 2018. É gestor do Ambiente (pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e mestre em Sociologia: Exclusões e Políticas Sociais (pela Universidade da Beira Interior).

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