Desgooglar
O sinalAberto lançou o desafio: a partir do texto provocador de Luís Martinho do Rosário publicado há dois dias, sob o título, “Desgooglar: um imperativo de liberdade e soberania”, que houvesse quem se chegasse à frente e prolongasse a discussão. Eis a primeira das reações que recebemos.
Por muito que o neguemos, por muito visionários que queiramos parecer, nunca nos passou pela cabeça que atingiríamos um ponto em que todos e cada um de nós dependesse em tão elevado grau das tecnologias da informação e comunicação (TIC). É impossível encontrar uma área de atividade que não dependa – direta ou indiretamente – de ferramentas computacionais, do processamento de informação, da comunicação entre sistemas. Apesar do seu caráter crítico, até setores como a segurança nacional, a governação, a energia, a saúde e a proteção civil de muitos países dependem das TIC. Nunca a informação e a comunicação tiveram tanta importância, sobrepondo-se a interesses económicos, fronteiras ou governos.
Por si só, tudo isto já seria bastante para nos preocuparmos, para tecer longas considerações sobre o impacto de tais questões nas nossas vidas, na nossa liberdade de decisão – cada vez menor porque cada vez mais estamos dependentes de tantos outros – e na nossa sociedade. No entanto, centraremos a nossa atenção em algo muito mais microscópico, mas não menos importante: o impacto das TIC na nossa capacidade para pensar, para investigar e procurar soluções, para analisar de forma crítica o que nos rodeia, em suma, para sermos humanos.
Falo, concretamente, da hiperabundância de informação que caracteriza o nosso ambiente, decorrente, naturalmente, da generalização das TIC. Talvez fosse melhor falar em hiperabundância de dados, já que informação a mais deixa de ter caráter informativo e passa a ser, meramente, um extenso conjunto de dados, quando não um extenso conjunto de lixo do qual nada se consegue extrair. Mas dêmos-lhe o benefício da dúvida e chamemos-lhe informação.
Com as TIC, com a Internet e com o quase inimaginável repositório de informação disperso por incontáveis servidores, cremos que passámos a ter ao nosso alcance imediato um conhecimento inesgotável. Tudo está ali, no ecrã de qualquer dos nossos dispositivos, cada um destes com um poder computacional milhões de vezes superior ao de um supercomputador de há três ou quatro décadas. De repente, deixou de ser preciso, estudar, investigar, analisar, raciocinar. Para quê, se alguma ‘inteligência superior’ já fez isso por nós? Entregamo-nos, assim, ao ditame de um qualquer motor de buscas, que conhece melhor que qualquer pessoa a verdade absoluta, inquestionável, objetiva e inapelável. Rendemo-nos. Deixamos de nos interrogar, de colocar hipóteses, de defender teses, porque o motor de buscas tudo sabe.
Não há dúvida que os extremos se tocam. Ter acesso a catadupas de informação parece fazer de nós ignorantes, quando deveria ser, precisamente, o contrário. Mas o problema não está nas TIC nem no manancial de dados que disponibilizam, mas sim na forma errada na qual os usamos. As tecnologias são um meio indispensável para nos permitir ter acesso a elementos sobre os quais pensar, não para nos impedir de pensar. Por isso, “googlar” é importante, mas muito mais importante – e difícil – é “desgooglar” logo em seguida, ou seja, pensar pela nossa cabeça, identificar os erros próprios e alheios, tirar conclusões e, mais importante ainda, aprender. Só assim poderemos tirar verdadeiro proveito das TIC.
16/07/2020