Despedidas em 2022
Todos os anos amigos, celebridades ou pessoas das mais simples nos deixam, cumprindo o destino das suas vidas. Partem deixando-nos mais pobres, mais tristes, mais solitários.
O ano que passou não foi excepção. E, assim, gostava de recordar algumas pessoas que partiram, deixando a sua marca no Mundo e no meu.
A cantora Gal Costa (1945-2022) – de nome completo Maria da Graça Penna Burgos Costa – é também reconhecida como compositora e multi-instrumentista brasileira. Considerada uma das vozes mais versáteis do Brasil e do Mundo, Gal percorreu todos os géneros musicais e foi eleita na lista dos 200 maiores cantores e cantoras de todos os tempos, pela revista Rolling Stone, como a maior cantora do Brasil. Por sua vez, a revista Time nomeou-a como uma das 10 maiores cantoras do Mundo
Ela foi a voz de Gabriela, enquanto Sônia Braga era o corpo sensual da personagem inventada por Jorge Amado. Em 1975, Gal Costa faz imenso sucesso ao gravar, para o genérico e os créditos da telenovela da Rede Globo “Gabriela”1, a canção “Modinha para Gabriela” (autoria de Dorival Caymmi). Desse ano também é o sucesso “Teco-Teco” (de Pereira da Costa e Milton Vilela).
Sônia Braga2 foi indicada, pela The New York Times Magazine, como uma das maiores actrizes do século XX. Também foi a indicada ao Golden Globe BAFTA e Emmy. A actiz brasileira (naturalizada norte-americana), agora com 72 anos de idade, representa desde os 17 anos e construiu uma carreira consolidada no Brasil e no exterior. As suas personagens são referências e ícones da televisão e do cinema, permitindo que Sônia caminhe na diversidade possível das personagens e dos perfis na sua actuação.
Lembro-me perfeitamente da primeira emissão da série (telenovela) e de como as pessoas corriam para casa (até os deputados da Assembleia da República!) para não perderem um episódio… Eram os primeiros tempos das telenovelas e dos primeiros genéricos sensuais que apresentavam corpos com a naturalidade, o “sabor próprio” e a beleza de um corpo nu…3 Portugal estava a iniciar a sua democracia e perdia a “virgindade” nos ecrãs domésticos!
Também do Brasil vieram notícias da partida do “rei” Pelé (Edson Arantes do Nascimento), aquele que foi considerado como “o melhor jogador de sempre do Mundo”. Partiu pouco antes do fim do ano. Vimos o Pelé (mesmo eu que não sou entusiasta do futebol) no Chile, no Mundial de 62, apesar de ele ter jogado só uma vez4. Ficará para sempre, sobretudo para mim, esse momento iniciático de ter visto “o melhor futebolista de todos os tempos”, no meu país de origem!
Quem se lembra da “Mala de Cartão”5 e da sua autora Linda de Suza (nome artístico de Teolinda Joaquina de Sousa Lança)? Uma das mais famosas cantoras portuguesas, emigrante em França. Ficará para sempre reconhecida pela sua “Mala de Cartão”, a qual deu origem a um livro autobiográfico, líder de vendas, com esse mesmo título. Eram os anos 70 do século XX, com as condições e as dificuldades económicas e opressivas de um Portugal não democrático. Nessa época, Linda de Suza acabaria por se transformar num símbolo da “liberdade nacional, pela sua atitude corajosa”. O actual presidente francês, Emmanuel Macron, declarou que a cantora portuguesa Linda de Suza foi “uma rainha dos anos 80″em França e que, pelo modo como cantou a história da imigração lusa, se tornou num “ícone dos destinos cruzados”entre Franceses e Portugueses.
Era o último dia do ano e o Papa Emérito Bento XVI falecia na manhã desse sábado, aos 95 anos, no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano, onde vivia há cerca de dez anos. Bento XVI, cujo nome de baptismo é Joseph Ratzinger, foi eleito para presidir aos destinos da Igreja Católica em 2005, sucedendo a João Paulo II. Renunciou em 2013, sendo desde então Papa Emérito.
Joseph Ratzinger, como teólogo, contribuiu para dar forma e acompanhar o Concílio Vaticano II. Refira-se que o Concílio Vaticano II (XXI Concílio Ecuménico da Igreja Católica) foi convocado a 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal “Humanae salutis”, pelo Papa João XXIII. Este mesmo Papa inaugurou-o, a ritmo extraordinário, no dia 11 de Outubro de 1962. O Concílio, realizado em quatro sessões, só terminou no dia 8 de Dezembro de 1965, já durante o papado de Paulo VI.
Ratzinger trabalhou na preparação do Concílio Vaticano II e foi membro de diversas comissões, tendo, no final, redigido os comentários às constituições Lumen gentium, Sacrosanctum concilium, Dei Verbum e Gaudium et spes. Concilio que ele descreve com entusiasmo: “João XXIII havia anunciado o Concílio Vaticano II, reavivando – em muitos até a euforia – aquele sentimento de renascimento e esperança que, apesar da ameaça que a etapa nacional-socialista havia suposto, ainda estava vivo desde o final do Primeira Guerra Mundial.”
Muitos perguntarão, quanto ficou desse cardeal, mais tarde investido Papa, bem como daquele momento histórico e transcendente que significou o Concílio Vaticano II. No entanto, para mim, João XXIII será, sempre, o Papa da minha vida!
Dois amigos dramaturgos e autores desapareceram, igualmente, em 2022. Um deles, o Norberto Ávila (falecido em 11 de Maio de 2022), é um reconhecido autor açoriano6. O outro amigo recentemente falecido (também escritor, cronista, diplomata e dramaturgo) é Manuel Poppe.
Manuel Poppe Lopes Cardoso viveu parte da infância e da adolescência na Guarda, tendo continuado ligado a esta cidade por fortes laços e “memória dos afectos”. Foi para a cidade da Guarda em 1950, por razões de saúde, para tratar uma tuberculose pulmonar, e aí fez a quarta classe e a admissão ao liceu. Em 1969, mudou-se para São João do Estoril. Foi colaborador efectivo do extinto Diário Popular, onde dirigiu, em colaboração com o jornalista Jacinto Baptista, o suplemento cultural “5.ª feira à tarde”. Fundou, com outros autores, a revista O Tempo e o Modo. De 1972 a 1974, produziu o programa “O Livro à procura do leitor”, para a RTP. Foi colaborador do Jornal de Notícias. E também conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Israel, um país em guerra, que o fez escrever “Sombras em Telavive”. Sem esquecer os 15 anos em Roma, mais cinco em São Tomé e Príncipe e algum tempo em Marrocos.
No ano de 2000, encenei para a Seiva Trupe (companhia profissional de teatro do Porto), a peça “Os Amantes Voluntários” (farsa quase trágica em um acto) – do elenco inicial com Manuel Geraz e Romi Soares – texto que os editores apresentam, assim, numa breve sinopse: “Noite. Um quarto de hotel de luxo. Em cena Marike E. e Giacomo G., à vontade. A cama desfeita. Clima de ordem e intimidade. Parece ligar as personagens consentimento, cumplicidade, curiosidade, agressividade, cansaço e, também, o que o espectador deverá imaginar que sucedeu antes: que os dois corpos se tiveram.”
A peça tinha sido escrita para a Seiva Trupe e estava na gaveta há anos, foi o actor e director artístico Julio Cardoso que me fez o desafio desta encenação. Particularmente, não conhecia a peça, apenas o seu autor e as suas breves crónicas, sempre muito interessantes, na última página do Jornal de Notícias, acompanhadas ou alternadas com as também sempre curiosas e belas crónicas de Manuel António Pina.
Manuel Poppe assistiu ao ensaio geral e acompanhou a estreia. Desde esse momento, ficámos muito próximos, intercambiando afectivas mensagens e saudações. Pouco depois da sua morte (a 10 de Dezembro de 2022), que nos apanhou a todos de surpresa, liguei à sua esposa para lhe apresentar as minhas condolências, ela lembrou as muitas vezes que o Manuel se recordava de mim e daquele nosso primeiro encontro na cidade do Porto.
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Notas da Redacção:
1 – “Gabriela, Cravo e Canela”, baseada no romance homónimo de Jorge Amado, foi a primeira telenovela brasileira a ser emitida em Portugal, estreada a 16 de maio de 1977.
2 – Sônia Maria Campos Braga.
3 – “A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas”, é uma frase do poeta Fernando Pessoa.
4 – Pelé lesionou-se logo no segundo jogo.
5 – “Mala de cartão” era o símbolo da comunidade portuguesa em França, como regista a canção “Um Português”.
6 – Como o próprio Norberto Ávila assumiu na “Biografia Breve” incluída na sua página electrónica, é dramaturgo, romancista, contista e poeta, tendo nascido em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira (nos Açores), a 9 de Setembro de 1936. No seu registo biográfico, acrescenta que, de 1963 a 1965, frequentou, em Paris, a Universidade do Teatro das Nações. Criou e dirigiu a revista Teatro em Movimento (em Lisboa, de 1973 de 1975). Chefiou, durante quatro anos, a Divisão de Teatro da Secretaria de Estado da Cultura, tendo abandonado o cargo em 1978, a fim de se dedicar “mais intensamente” ao seu trabalho de dramaturgo. Traduziu obras de Jan Kott, Shakespeare, Tennessee Williams, Arthur Miller, Jacques Audiberti, Junji Kinoshita, Valle-Inclán, Fassbinder, Blanco-Amor, José Zorrilla e Liliane Wouters. Entre outras acções culturais, dirigiu para a RTP (1.º Canal), a partir de Novembro de 1981, uma série de programas quinzenais dedicados à actividade teatral portuguesa, com o título de Fila 1.
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19/01/2023