Diálogo sobre género e desigualdade com Debora Diniz
Num intervalo temporal de 30 dias três notícias abalaram-me. No Brasil, uma menina estuprada desde os seis anos, grávida aos 10 e que foi perseguida por decidir abortar. Em Portugal, a moção partidária que propunha a retirada dos ovários a mulheres que abortassem pelo sistema público de saúde. Na Universidade de Lisboa, um professor de direito penal que fala de mulheres como “canalhas” e “desonestas” e compara o feminismo ao nazismo.
Sentia-me como aqueles atletas que treinam corrida com uma faixa elástica que não os deixa sair do lugar. Era este o resultado de tantos anos de luta? Estavam os fatos a esfregar-me na cara o próprio fracasso como civilizacão?
Eu precisava ouvir alguém especial para compartilhar indignação. No final, todas essas notícias, meus questionamentos se uniram na minha cabeça a gritar um só nome: Debora Diniz.
Conheci o trabalho de Debora em 2012 quando eu divulgava revistas científicas para a imprensa brasileira e tinha em mãos o editorial do nº 7, vol. 17, da revista Ciência & Saúde Coletiva intitulado “Aborto: um relevante tema interditado”, assinado por ela. No final do texto, Debora dizia que a magnitude do aborto ilegal e inseguro desafiava as pesquisadoras em saúde pública a enfrentar a controvérsia política pelo uso da pesquisa acadêmica: “Não devemos esperar que o dilema moral do aborto seja solucionado por um pacto moral razoável sobre crenças tão diversas. Nossos esforços argumentativos devem estar na produção de evidências científicas que demonstrem as consequências para a vida e a saúde das mulheres em criminalizar o aborto.” Eu nunca havia pensado nisso.
Continuei a acompanhar e divulgar vários momentos da trajetória desta mulher que já se apresentou assim: “Nasci em Maceió, cresci em beira-mar diversa, virei gente no cerrado. Confesso que nunca provei pequi. Sou professora forasteira em campo alheio. Perambulo pelas margens da vida, fiz filme em manicômio judiciário, fiz livro sobre reformatório para menores em conflito com a lei e filmei na Cracolândia em São Paulo”.
Em 2004, Debora, como professora e antropóloga da Universidade de Brasília, liderou o grupo que acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) para permitir o aborto em gestações de fetos anencéfalos. Desde então, passou a receber ameaças, mas nada comparado ao que começou a acontecer em 2018 quando se tornou idealizadora de uma nova ação no STF, desta vez pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. As ameaças de morte aumentaram. Muito. E Debora foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e deixou o Brasil. Hoje é pesquisadora no Center for Latin American and Caribbean Studies da Brown University, nos EUA.
O dia amanheceu em Coimbra mas tive de esperar a hora do almoço chegar para não abordar Debora de madrugada, 5 horas nos separam. Enviei mensagem para o número que estava na minha agenda telefônica e rezei para que ela não o tivesse mudado. No meio da tarde os dois tracinhos de “mensagem lida” apareceram, minutos depois ela me escreve: mande sim as perguntas. Respondo por áudio prometo. Que bom que está por aí. Beijo.
Perguntei sua opinião sobre a universidade como espaço plural mas que pode albergar docentes (e alunos) praticantes da pedagogia da violência contra as mulheres.
– Não há uma porta mágica que nos leva a um lugar onde não existam as desigualdades do mundo, infelizmente não há uma porta mágica para um mundo sem o patriarcado, racismo, colonialidade do poder, misoginia e a homofobia… nem em nós e nem em nenhum espaço. Na universidade nos causa mais espanto do que em outros lugares porque lá é o lugar em que temos que pensar, que ali se podem fazer as perguntas certas sobre como conquistar a igualdade, como proteger as populações mais vulneráveis e aonde isso que o professor diz – e que é mentira – não faria sentido e não teria qualquer possibilidade de ser enunciado. Então o que causa maior surpresa não é haver desigualdade na academia mas é ela ser enunciada como possível. O que uma universidade faz, diferente de outros espaços, é um treino para a domesticação dessas desigualdades, ao dizer tudo isso, este professor quer criar uma narrativa do possível.
Comentamos que a mulher é sempre o canário na mina de carvão quando conservadores anunciam diretrizes como foi o caso da moção apresentada na Convenção Nacional do partido Chega que propunha a “remoção dos ovários” a mulheres que recorram à interrupção voluntária da gravidez no Serviço Nacional de Saúde “como forma de retirar ao Estado o dever de matar recorrentemente portugueses por nascer”.
– Eu venho trabalhando com a alegoria de um redemoinho para questões da extrema direita ou do bolsonarismo, no caso brasileiro. Forças muito diferentes se movimentam na parede desse redemoinho, porém no olho do furacão está o patriarcado, a misoginia e a perseguição às mulheres e meninas. Isso não pode ser ignorado e não é uma coincidência, essa insistência na reprodução biológica porque reprodução social está relacionada com os movimentos da extrema direita.
Mostrei a edição de abril da revista Lilly do Washington Post, que fez um alerta sobre o agravamento pós-pandemia das disparidades de género na ciência, pois as mulheres sob confinamento estão a submeter menos artigos que homens. A reportagem traz dados norte-americanos sobre homens académicos que enviaram até 50% a mais do que fizeram no mesmo período em anos anteriores enquanto que o número de artigos científicos submetidos por mulheres caiu. Para Debora, a pandemia afeta as mulheres com seus privilégios ou suas desigualdades prévias.
– Mulheres no topo da estratificação social, como as académicas, também tiveram as suas desigualdades mais exacerbadas, muito porque elas se ancoravam em outras mulheres para a ascenção. Quando estas académicas se veem diante dessa situação dramática que é conciliar o trabalho da economia do cuidado doméstico com sua produção científica temos como métrica objetiva o declínio de sua produção.
Por fim, quis saber o que mais preocupa essa mulher que luta em tantas frentes e que por isso mesmo precisou sair do seu país, se distanciar de sua família, deixar seus alunos. Na caminhada de Debora Diniz estão muitas lutas, como os direitos das gestantes atingidas pelo vírus Zika, a realidade atrás dos muros dos manicómios judiciários, a justiça para Marielle Franco, a vida das detentas do sistema carcerário feminino.
– Hoje o que tira meu sono é saber como posso me conectar ao tempo presente, como conseguir ser contemporânea às lutas e às necessidades de vida das mulheres e das meninas. Dentro da minha janela enviesada onde tenho proteção, renda e não sofro violência, pergunto-me como posso exercitar minha imaginação para estar junto do mundo?
Essa pergunta me bate tão forte que preciso dividi-la com vocês: alguma ideia?