Diário de guerra (II)

 Diário de guerra (II)

Créditos: FabrikaPhoto/Envato

1. Há muito que era notória a alteração verificada na Casa Branca. O presidente de jure, aquele que jurou publicamente a Constituição, foi substituído pela instituição que quase sempre desempenhou esse papel de mandar na política externa americana, o Pentágono. Para tal, aproveitou a oportunidade de uma guerra lá longe e de um presidente sem capacidade de liderar o país nestas circunstâncias. Biden não deixa de continuar a residir na 1600 Pennsylvania Avenue NW, Washington DC e o Gabinete Oval não deixa de ter a agenda sempre cheia, mas tem à disposição o helicóptero para se deslocar para Camp David, quando quer passar uns fins de semana alargados, bem como o Air Force One com o depósito atestado, para o caso de querer dar um salto a Miami. Porém, quem passou a mandar, de facto, nos EUA é o chefe do Pentágono, o senhor Lloyd Austin. Biden desapareceu. Veja-se a declaração do seu porta-voz, dirigindo-se ao Mundo, em nome da coligação que decidiu ultrapassar o presidente da Ucrânia para passar a chefiar a guerra que era dele. Naquilo que afirmou, deu claramente a entender que a adjectivação até agora utilizada era insuficiente, “carniceiro” e “genocida” já não era bastante, tornava-se necessário subir vários patamares, “depravado” é que assentava bem a Putin. Não tivesse a opinião pública de ser alimentada, falta agora ao Pentágono ditar a sentença que ditou a Saddam Hussein: a sua liquidação física; antes dela, qualquer coisa com conotação sexual vem mesmo a calhar.

2. Entretanto, um jornal de grande circulação construiu uma notícia cujo título é a sua contribuição para o esforço de guerra: “UE contra chantagem russa no gás e Putin ameaça com ataques relâmpago”. Como se a manipulação do corpo das notícias sobre a guerra na Ucrânia não fosse suficiente, ela acabou de chegar aos títulos. Considerando a notícia de que o corte de fornecimento de gás à Polónia e à Bulgária fora feito enquanto aqueles países não pagassem o que devem – não se toma uma decisão dessas só porque se acordou virado para esse lado – e observando também que Putin fez aquela ameaça no caso de ingerência externa no conflito, o Diário de Notícias constrói um título em que dá a entender que a ameaça de Putin está relacionada com qualquer medida que a União Europeia (UE)  tome sobre o fornecimento de gás. Todavia, a situação é completamente outra. Mau grado as sanções decretadas pela UE, todos os países continuam a receber gás da Rússia, em proporções variadas, desde que satisfaçam as novas condições impostas por este país: o pagamento em rublos. Se a UE entende que deve aplicar sanções em consequência de se estar perante uma situação nova, a invasão do território ucraniano, esse mesmo argumento, ipso facto, serve igualmente para a Rússia. Verificando que a sua economia está a ser prejudicada pelas sanções, a exigência de pagamento em rublos não é mais do que consequência lógica daquela decisão. É isto uma chantagem? Porém, associar isto à ameaça de ataques-relâmpago é um expediente com finalidade bem precisa, como a de continuar a defender uma causa utilizando para o efeito a mensagem manipulada. Isto já não é notícia, é batota. Por outro lado, qual foi o jornal português de grande circulação que deu como título de primeira página a reunião do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) com o presidente russo? Nenhum. O mais longe que conseguiram ir foi reservar um espaço de dimensões variadas para inserir uma imagem das duas personalidades que estiveram reunidas, tendo tratado tanto das questões humanitárias como das questões da paz.

Créditos: Botana (Pixabay)

3. Apesar do atraso, o passo do secretário-geral da ONU foi importante? Foi muito importante. Em situações destas, raramente e já com esta extensão, não existem grandes passadas, o que importa são os pequenos passos em que se trata do cessar-fogo e da paz. Ao contrário desta iniciativa, a que ocorreu nesse mesmo dia na Alemanha, reunindo 40 falcões, e as peregrinações a Kiev para prometer mais balas, mais tanques, mais mísseis e mais aviões, são todas para manter a guerra e, se possível, para elevar o seu patamar a um nível difícil de gerir, por quem deseja uma solução pacífica para o conflito, sem vencidos nem vencedores, com a resolução da situação no Donbass por via diplomática e com o apoio humanitário aos civis que foram alvo dos efeitos da guerra. É que um processo como este, assumidamente político, pode iniciar-se com um objectivo, que acaba por se tornar decisivo para alcançar a finalidade de cessar-fogo em todo o território ucraniano. Até ao momento, nenhuma deslocação levou na agenda a intenção de conversar com o presidente ucraniano sobre a paz. Tudo teve sempre a ver com a satisfação das exigências deste governante. Depois das deslocações do secretário-geral da ONU a Moscovo e a Kiev, impõe-se a pergunta: a quem está a servir a guerra?

4. “Volodimir Zelenskii não esteve directamente ligado à ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia, porque nem sequer estava na política quando o processo foi desencadeado pelo Ministério do Interior da Ucrânia e que culminou na decisão judicial. O Presidente esteve, contudo, na origem da suspensão da actividade política de mais de uma dezena de partidos, após a invasão russa da Ucrânia a 24 de Fevereiro”, é a notícia divulgada sobre a situação partidária na Ucrânia. Falando do 25 de Abril, como fez o presidente da Ucrânia na sua alocução aos parlamentares que estiveram no hemiciclo português, é censurável que o tenha feito e que tenha sido convidado a fazê-lo, quando tem no seu currículo a proibição de partidos políticos do país que governa. O presidente da Ucrânia devia ter-se informado previamente das medidas imediatamente tomadas pelos militares, à excepção de António de Spínola, as quais libertaram todos os presos políticos e legalizaram todos os partidos políticos. É o que faz qualquer democrata, quando está nas suas mãos essa decisão. Todavia, em 2019, quando foi eleito, Zelensky não só não revogou a ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia, concretizada em 2015 a pedido do então presidente Petro Poroshenko, por alegado apoio ao movimento separatista do Donbass, como lhe acrescentou mais 11 partidos políticos. Ficou ele e mais o título do seu programa de stand-up. Foi este o senhor que veio falar aos 224 parlamentares portugueses que o aplaudiram ferverosamente como se de uma aparição mariana se tratasse. Reverenciar tamanho democrata que, de uma só vez, ilegaliza tudo quanto é força partidária no seu próprio país diz bem da catadura dele e dos amigos da criatura.

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Nota do Director:

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05/05/2022

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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