Diário de guerra (III)
1 – Desde que numa rua de Bucha foram encontrados vários mortos, quatro dias depois de as tropas russas terem sido substituídas pelas tropas ucranianas, que o tema dos crimes de guerra não pára de ser brandido pelo presidente da Ucrânia, defendendo que já há vários milhares de baixas causadas pelos russos que se encontram nessa classificação.
Certamente, no meio de tantos milhares de mortos e de feridos, só para falar nestes casos, terão existido, tanto de um lado como do outro, crimes de guerra. Porém, para que esta classificação seja atribuída a um dado caso terá de ser uma entidade independente a comprovar que se está em presença de tal acontecimento. Caso contrário, estamos perante um conflito de interesses, em que o interessado, arbitrariamente, selecciona os casos que, em seu juízo, entram nessa classificação.
No limite, e seguindo este critério, todas as mortes podiam ser consideradas crimes de guerra. Um crime de guerra não é quando o Pentágono manda que seja. Contudo, se os critérios forem outros, relativamente aos que estão previstos na Convenção de Genebra, então tudo o que é divulgado sem prévio escrutínio independente não passa de propaganda, cujo propósito consiste em manter uma opinião pública em brasa, a exigir sangue. É isso, aliás, que o presidente da Ucrânia quer quando exige ao Ocidente armas, armas, armas… em vez de paz, paz, paz.
2 – “Os portugueses, serenos e sábios, estão preparados para um impacto prolongado da guerra. Numa sondagem realizada pela Aximage para o DN, JN e TSF e publicada esta sexta-feira [27 de Maio], cerca de 40% diziam acreditar que o conflito irá durar mais de um ano”, escreve Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias, no seu editorial de sábado (28 de Maio). A directora do DN sabe ou deveria saber que nada a autoriza a concluir que os portugueses estão preparados para a continuação da guerra a partir da percentagem dos que acreditam que o conflito se vai prolongar. A sua vontade pode inferir isso, mas a estatística não lhe diz isso. Primeiro, porque acreditar em alguma coisa é diferente de estar preparado para ela; teria, antes, de ser feita uma pergunta inequívoca sobre o assunto, foi o que me ensinaram. Seguidamente, teríamos de saber que percentagem acredita que o conflito vai durar menos de um ano. Vindo da directora de um jornal que se quer respeitável, estas afirmações só contribuem para o desacreditar. O alinhamento de muitos textos com a retórica do Pentágono em nada serve o propósito de um desfecho breve do conflito. Se tivessem sido, de facto, independentes desde o início, porventura as opiniões públicas ocidentais já teriam entrado em cena e obrigado a União Europeia (UE)/NATO a sentar-se à mesa das negociações com os russos. Com a cegueira de serem obedientes ao que chega do outro lado do Atlântico, hipotecaram a sua função para se transformarem em pirómanos da guerra. À propaganda o que é da propaganda, ao jornalismo o que é do jornalismo.
3 – Corre por aí que é necessário parar a guerra na Ucrânia, mas de maneira que Putin não perca a face. Querendo isso dizer, presumo, que os defensores da fórmula já desistiram de ganhar a guerra e abandonaram a ideia de prolongar o conflito. Presumo também que, para eles, o que começa a contar é salvar o mealheiro. Ao fim de 90 dias, é isso o que para o Ocidente começa a estar em jogo.
Por muito que a senhora Ursula von der Leyen gesticule, nunca serão os seus braços a conseguir reunir os 27 Estados-membros num apertado abraço. Cada Estado já começa a fazer contas à vida, basta um começar. Houve um tempo em que se deixaram embalar pela tribunícia do presidente ucraniano, hipnotizados pelo dramatismo da sua oratória, e não se prepararam para pôr fim ao conflito logo nas primeiras semanas. Vêm agora com piedosas manifestações de compreensão para com o presidente russo, precisamente, quando a região de Donbass e a península da Crimeia estão perdidas.
Aquela oferta não passa do reconhecimento de que esta guerra está a sair cara ao Ocidente, com a situação social a começar a descontrolar-se, seguindo-se, inevitavelmente, as consequências políticas para quem, nesta altura, governa. Os ucranianos saberão, certamente, o que fazer nestas circunstâncias, duvido é que coincidam com a vontade do Pentágono. Se a comunicação social – que ficará, neste caso, para a história da submissão do jornalismo europeu à lógica do Pentágono, como seu órgão de propaganda – começa a retirar-se do terreno, é porque alguma coisa estará para acontecer. E o que estará para acontecer não será decerto salvar a face de Putin (querem eles lá saber dela!), mas a dos dirigentes europeus.
4 – “Quatro em cada dez inquiridos pela Deco Proteste dizem não ter margem financeira, se a crise causada pela guerra na Ucrânia se agravar.” Sabia-se já que as sanções impostas à Rússia estavam a ter efeitos negativos nos portugueses, basta ir à mercearia ou ao supermercado e estar atento ao que se diz. Não se conhecia a escala desses efeitos. Se, ao fim de três meses de conflito, estamos neste grau de impacto nas condições de vida das pessoas, imagine-se o que poderá vir a ser se, como por aí se diz, o conflito se prolongar muito mais.
Aos efeitos sobre as condições de vida seguem-se, inevitavelmente, as consequências políticas com o recrudescimento de greves, de protestos, de manifestações e de todo o tipo de reações próprias de quem vê esgotar o seu orçamento doméstico a meio do mês. Até agora, a solidariedade não tinha um custo, bastava umas manifestações, uns abaixo-assinados, umas moções e regressava-se a casa confortado, pois o preço da carcaça continuava igual.
A partir de agora, as pessoas também vão começar a perguntar, além da solidariedade, o que se está a fazer para acabar com a guerra, não lá para qualquer dia, mas hoje, o mais tardar amanhã. Quando a solidariedade começa a ser um imposto, tem os dias contados. É que não se está a fazer nada além de se passarem cheques ao governo ucraniano e a descarregar material bélico para que a guerra não tenha descanso. O primeiro-ministro português, que indisfarçavelmente deseja, tão cedo quanto possível, ter um assento na UE, bem poderia chamar a si o papel de líder político com propostas para um processo de negociações que terminasse numa declaração de paz entre a Rússia e a Ucrânia. O seu camarada da Organização das Nações Unidas foi bem-sucedido na diligência humanitária que realizou em Moscovo e Kiev. De facto, o que está a acontecer naquela região passou de um conflito exclusivamente político para se tornar, também, numa questão humanitária, considerando o grau de destruição provocado pelos combates, o número de mortos e de feridos, a par dos milhões de refugiados e de deslocados. Perante isto, não há outra alternativa senão a paz. E seria a este respeito que Portugal poderia desempenhar um papel de relevo. Deixo a minha proposta a António Costa.
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Nota do Director:
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06/06/2022