Diário de guerra (V)
1 – Devo uma palavra de amizade e apoio a São José Lapa, pelo ataque que está a sofrer da parte de quem não a está a poupar a actriz por ter erguido a voz contra o lamentável espectáculo oferecido pelo cantor Abrunhosa, ao dirigir-se aos governantes russos em tons insultuosos. Obviamente que a campanha movida pelos “abrunhosas” contra São José Lapa pouco ou nada tem a ver com o facto de ela ter dito que o cantor não tem voz, eles querem lá saber da garganta dele, isso foi só o pretexto para a roda de insultos de que ela foi alvo. Na figura da actriz, o objectivo é policiarem as vozes discordantes, procurarem silenciá-las pela intimidação.
No caso do artista, não se dirigiu ao público presente com palavras de solidariedade aos Ucranianos pela situação que estão a viver e de que são vítimas. Estaremos a andar para trás se a liberdade de expressão passar a ser utilizada como um instrumento de ódio, como acabou por acontecer. De pessoas que estão em cima de um palco, com espectadores à sua frente, espera-se elevação, contenção dos impulsos. Quem está a ouvi-lo não deve ser objecto de manipulação, aproveitando o momento de descontração para instilar o ódio.
Se o artista, mesmo assim, desejasse manifestar a sua indignação para com os governantes russos, que organizasse um comício, uma concentração, uma manifestação com esse propósito, estaria lá quem se quisesse associar aos insultos e a outros ultrajes. Aproveitar-se do seu estatuto para outros fins que não estão no cartaz é uma rasteira que está a fazer a quem o foi ouvir. Por isso, esteve bem, uma vez mais, São José Lapa, quando ergueu a voz publicamente contra a falta de pudor do cantor. Com ela estão muitos milhares que, de forma anónima, resistem a ser capturados pela moda em vigor. Embora seja tempo de tudo continuar a fazer pela paz, estes acontecimentos não devem ficar sem resposta, porque os valores da democracia assim o exigem.
2 – Está a tornar-se num cânone o Diário de Notícias (DN) associar-se às manifestações mais descabeladas, dando-lhes projecção de primeira página. Não satisfeito com o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros com que este reagiu à sua exigência, o cantor Abrunhosa vem agora fazer outra reivindicação, que o ministro da Cultura lhe manifeste publicamente solidariedade. Já nem acontece com os miúdos, contudo, o artista está a comportar-se como tal, Cravinho deu-lhe a mão, agora exige a Adão e Silva o braço. Que o ministro da Cultura não vá na conversa, não tanto por ele, mas porque não se sabe onde e quando o artista terminaria, se no primeiro-ministro, se no Presidente da República. Em claro processo de desaparecimento público, Abrunhosa viu na guerra da Ucrânia a oportunidade para voltar a ter os favores da comunicação social, com direito a entrevistas e a primeiras páginas, e neste carril vender alguns milhares de exemplares dos seus trabalhos.
Do seu ponto de vista, viver-se num país democrático até para isso deve servir: no meio de uma actuação, insulta-se uma personalidade com projecção mundial e está dado o tiro para uma campanha de propaganda ao produto que se quer vender. Para os especialistas de marketing isto não deve constituir novidade, eles conhecem todos os truques para levar uma embalagem de detergente à Presidência da República. Felizmente, ainda não chegaram à estação preferida do artista.
Dirá ele que a expressão que utilizou está banalizada. É verdade. Quando utilizada na linguagem corrente, não tendo a conotação insultuosa que lhe é dada. Porém, não foi isso o que aconteceu. A expressão foi gritada e foi feito o apelo para que a assistência a gritasse igualmente. Não se estava, propriamente, à mesa do café a apreciar a derrota da sua equipa de futebol, aquilo foi mesmo para chegar ao Kremlin, via embaixada da capital.
Por isso, quem tinha a obrigação de apresentar um pedido de desculpa era ele, porque, seja qual for a avaliação que se faça de alguém com quem estejamos no pólo oposto das suas escolhas, aquele tratamento deve ser evitado, para que o ambiente se mantenha respirável. Mesmo que tenha essa ambição, ainda, e queira ser visto como tal, a Abrunhosa falta-lhe tudo para ser um enfant terrible. Só é um sujeito inconveniente com direito aos favores da comunicação social.
3 – “A guerra que Putin está a travar contra a Ucrânia é também uma guerra contra a unidade da Europa; não nos devemos deixar dividir, não devemos permitir que a grande obra de uma Europa unida que começámos tão promissoriamente seja destruída”, disse Frank-Walter Steinmeier, actual presidente da Alemanha (DN, 25/07/2022). A invasão da Ucrânia não se fez contra a União Europeia (UE), se a considerarmos como o actual modelo de unidade europeia, é a UE que não está a resistir aos efeitos domésticos das sanções que impôs à Rússia. Sanções essas que, depois da retoma de funcionamento do gasoduto que liga a Rússia à Alemanha e dos acordos para o escoamento dos cereais a partir do porto de Odessa, vão colocar a muitos países europeus o dilema de continuar ou fazer de conta que continuam a apoiar o boicote aos produtos russos. Essas duas decisões do governo russo podem constituir, aliás, o melhor argumento para, no seio da UE, se começar a considerar, não tanto a canalização de mais armamento, mas o início do processo de negociações de paz entre os dois países.
Os europeus, ao contrário do que os seus governantes lhes vinham dizendo, e de que a senhora Ursula von der Leyen é sua profeta, estão a verificar que, afinal, o governo russo cumpre os acordos. Vai haver gás e vai haver cereais, e poderá haver muito mais se levarem o presidente ucraniano a rubricar com o presidente russo o fim das hostilidades. Resta, porém, um obstáculo de monta. Esse obstáculo é o reconhecimento de que o Ocidente se perdeu na aventura em que se meteu. E seria essa derrota que iria contribuir e reforçar a emergência de um mundo multipolar, com os Estados Unidos da América (EUA) a perder a hegemonia mundial do seu poderio militar e económico. Tal como a situação se apresenta, só falta esse passo. E é esse passo que os EUA vão regatear, de maneira a conseguirem manter a UE pela trela.
Já que os governantes ainda não dão sinais claros e inequívocos de quererem seguir a sua vida sem dependências, e uma vez que a dose diária de desgraças continua a ser servida pelas televisões, cabe aos europeus mostrarem que, afinal, os Russos não lhes comem os cerais do pequeno-almoço, como se apregoava, nem lhes cortam o gás para o banho da manhã. O melhor será virem outros com disposição para se porem à conversa com quem devem conversar. E não nos devemos queixar se começarem a ser eleitos mais populistas, mas que se tenham comprometido em virar as costas à guerra. Além do mais, tirando a Crimeia, Lugansk e Donetsk, não se veem sinais de os Russos desejarem ir além destas regiões. Com quem os Ucranianos se devem preocupar é com a entrega do seu território à Polónia, à Hungria e à Roménia. Mas isso vão ter de se entender com a senhora Ursula von der Leyen. Ela é que deve estar por dentro do negócio.
.
………………………….
Nota do Director:
O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.
.
08/08/2022