Diário de guerra (VI)

 Diário de guerra (VI)

Tropas de Zelensky tentavam impedir a invasão da Ucrânia por forças russas. (Foto: Anatolii Stepanov / AFP via Getty Images)

1 – “De acordo com uma sondagem publicada pelo Carter Center, 75% dos entrevistados chineses concordam que apoiar a Rússia é do interesse nacional da China. (Diário de Notícias/LUSA, 28/08/2022) E perante estes três quartos de chineses a apoiarem a Rússia na invasão da Ucrânia, o DN titula a notícia com “Parte da opinião pública chinesa considera invasão da Ucrânia legítima”. Eis como de uma notícia, que até está escorreita e objectivamente elaborada, se produz uma síntese, porque é essa a função dos títulos, que abalroa a realidade estatística.

Na perspectiva do jornalista responsável pelas “gordas” do jornal, há-de haver sempre duas realidades: a do jornalista que redige a notícia e a de quem recebe as ordens do patrão do jornal. De facto, enquanto as percentagens de um acontecimento se situarem entre 0 – 100%, é inquestionável que 75% é uma parte do acontecimento, como o seriam 99% ou 1%.

No primeiro caso, está à mostra a interpretação do jornalista. Imagine-se, porém, o que seria 1% ou 10% (20% ou 49%) – teriam direito a primeira página, ao alto, a toda a largura da página. Destas, parecidas com estas ou equivalentes a estas está a comunicação social portuguesa cheia. Vive, nos últimos seis meses, e no que a esta matéria diz respeito, desta realidade paralela, que lhe foi apresentada, argumentada a cores e legendada para quem não percebesse o anglo-saxónico, aquela que mais pode contribuir para manter bem aceso o fogo da guerra, querem eles lá saber de quem morre ou de quem foge. O que se torna necessário é vender material bélico, aumentar o custo das energias, subir o preço dos bens essenciais, porque esse dinheiro vai escorrer para os bolsos de quem se mantém interessado no que está a acontecer na Ucrânia. O DN, no que lhe diz respeito, tem cumprido à risca o seu papel de que este é mais um retorcido exemplo.

2 – “Os indicadores avançados de Julho da OCDE confirmam o drama que as democracias europeias e os Estados Unidos vão enfrentar nos próximos meses: uma crise económica, a perda do poder de compra e o desemprego que depois se vão combinar com a queda de indicadores de conforto provocado pela carestia do gás e com a incerteza sobre a duração da guerra que está na origem de todos estes problemas.” (Público, 09/08/2022) Esta é uma passagem do editorial do director do Público, Manuel Carvalho, manifestando e reforçando a posição do jornal quanto à guerra na Ucrânia. O diagnóstico quanto às causas próximas das agruras por que os ocidentais estão a passar, parece que estão a ser pacíficas, os adoradores do deus NATO também estão de acordo.

(Créditos fotográficos: Divulgação / OCDE)

O Diabo, porque dele se trata, a acreditar na mitologia católica, está na solução, como os ocidentais se podem voltar a espreguiçar de manhã sem terem de começar logo a pensar se há gás para fazer o café. Noutras latitudes e longitudes europeias, já se começa a pensar que isto não vai lá com mais guerra. Por cá, o pensamento dominante, talvez porque estejamos no extremo ocidental, bafejados pela brisa marítima vinda do Norte, ainda continua a ser de ganhar a guerra.

O que vale é, externamente, os editoriais do Público valerem o que valem e nada influenciarem o que é decidido em Berlim, em Paris e em Roma, afinal, as capitais que importam neste caso. Porque, quanto a mim, e à medida que o frio se aproxima e a inflação atinge valores esmagadores para as carteiras da população, estará em andamento uma solução para levar os ucranianos à mesa das negociações, seja com estes ou com outros governantes.

Fazer da derrota de Putin, como defende o director do Público, a condição necessária para pôr fim às hostilidades é condenar os ocidentais à pobreza em nome de um objectivo que para eles está cada vez mais distante. Com o reforço das alianças que a Rússia vem promovendo com o Oriente, e a neutralidade do Sul, se aquele cenário nunca esteve na mente de quem pensa objectivamente nestas coisas, o pedido desesperado para que os serviços europeus de verificação de passaportes barrem a entrada a russos, tornou-se patético, crentes de que será a guerra psicológica a ganhar o conflito. Uma vez mais, acabará por emergir um acontecimento, um conjunto de vontades, uma mobilização que acabará com a guerra, porque as pessoas não a querem. Com ou sem o director do Público.

3 – “Oksana Pokaltchouk adiantou ter tentado convencer a administração da Amnistia Internacional de que o relatório era parcial e de que não levava em conta as opiniões do Ministério da Defesa ucraniano” (DN, 07/08/2022), é assim que se pensa actualmente na Ucrânia. Tudo quanto se diga sobre os crimes cometidos pelas tropas daquele país, deveriam passar pela peneira que o governo tem instalada para quem ousa relatar o que lá se acontece. Tanto mais que, historicamente, a Amnistia Internacional tem sido uma organização com o olho em cima da Rússia, tendo começado pela URSS, contribuindo significativamente para a criação de uma corrente de opinião anticomunista em todo o Mundo.

A líder da Amnistia Internacional na Ucrânia, Oksana Pokaltchouk, demitiu-se na sequência do polémico relatório da própria organização de direitos humanos, a acusar as forças armadas ucranianas de colocarem civis em perigo. (© Amnistia Internacional)

As críticas mais violentas de uma organização não-governamental sobre a actuação das tropas russas no terreno têm sido precisamente suas; e, que se saiba, não pedem autorização ao governo russo para as divulgar. O que se conhece é a sua relação próxima com a Casa Branca, basta consultar os relatórios para o confirmar, os EUA pouco constam deles, talvez porque tem havido, até agora, quem lhe faça o trabalho sujo.

Se a AI publicou um relatório a denunciar os crimes civis praticados pelas tropas ucranianas foi, certamente, porque lhe era impossível não o fazer, sob pena de se transformar numa organização sem qualquer crédito. Por isso, pode-se imaginar a quantidade acumulada de violações praticadas, além da violência com que foram realizadas. Não é por um país ter sido invadido por outro que fica isento de ser escrutinado. No plano da avaliação das consequências sofridas pelos civis, os critérios são obrigatoriamente os mesmos. Acusavam os russos de atacar instalações públicas, como hospitais, maternidades, escolas, creches. O que o relatório da AI confirma é que as tropas ucranianas procuravam essas instalações para servirem de pontos de combate contra os russos, com a vantagem de, ao serem atacadas, poderem acumular argumentos à sua propaganda: “vejam o que os russos nos fazem”. Porém, aos poucos, a mistificação tem vindo a ser desmontada.

Olena Zelenska posou com o marido, o presidente Volodymir Zelenski, para ilustrar uma entrevista sobre a guerra na Ucrânia. (Direitos reservados)

Depois do número da guerra na passadeira vermelha, promovido pela Vogue, e do relatório da Amnistia Internacional, os serviços de propaganda ucranianos vão ter de se esforçar e puxar pela cabeça para encontrarem novos motivos de intoxicação dos ocidentais.

.

………………………….

Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

.

05/09/2022

Siga-nos:
fb-share-icon

Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

Outros artigos

Share
Instagram