Diário de guerra (XI)

 Diário de guerra (XI)

(Créditos fotográficos: Alisa Yakubovych – EPA – rtp.pt/noticias)

1 – “O chefe da diplomacia europeia recomenda que se destinem mil milhões de euros da dotação do Fundo Europeu de Apoio à Paz, para a compra de projéteis de 155 mm utilizados pela artilharia ucraniana” (sic), informa o Diário de Notícias (DN), na edição de 1 de Março, seguindo a agência LUSA. O chefe da diplomacia europeia é, como se sabe, Josep Borrell, que juntamente com Ursula von der Leyen e Charles Michel (presidente do Conselho Europeu) constituem o triunvirato responsável por impedir, nesta altura, que a União Europeia (UE) tenha um papel mais responsável no conflito ucraniano.

Chefe da diplomacia europeia, Josep Borrel. (Créditos fotográficos: EPA / Julien Warnand – dn.pt)

Querendo isto dizer que a UE, porque isso lhe interessa, tanto do ponto de vista económico como humanitário, passe a ter um papel de liderança nos esforços de paz naquela região. Aquela recomendação de Borrell representa, pelo contrário, mais uma manifestação do uso de um fundo destinado à promoção da paz para fins contrários. Embora os recursos financeiros deste fundo sejam autónomos e distintos do orçamento da UE – é uma conta intergovernamental que serve para ressarcir os estados do envio de armas para a Ucrânia –, o facto é que continuam a ser os impostos pagos pelos cidadãos europeus a financiar parte do auxílio externo àquele país. Esquemas. Há quem continue a defender que a guerra serve para alcançar a paz. Em determinadas situações é assim, noutras serve para destruir povos e nações, em todas há sempre quem lucre com isso. Ora, aquele valor seria seguramente mais bem empregue, se não tivesse de dar uma volta para chegar à paz, ou seja, se fosse directamente aplicado nos esforços de paz, nomeadamente, no apoio às vítimas da guerra, criando-lhes condições para prosseguirem as suas vidas nos países de acolhimento. Nesta altura, já que não foi antes, darem-se sinais de que a UE se afasta do espírito da guerra é a melhor contribuição que pode dar para as armas se calarem. 

2 – Os governantes ocidentais iniciaram o ano de 2023 em modo histérico. Cada um grita mais alto do que o outro para o vizinho do lado: “Enviem os F para a Ucrânia, pelo menos qualquer coisa que voe, sem F os tipos não se safam, os Russos dão cabo deles.” E juntam-se ao coro do governo ucraniano: “A Ucrânia vencerá.”

Como podem os F-16 ajudar a Ucrânia a mudar o rumo da guerra? (cnnportugal.iol.pt)

Esta convicção, se é que estão mesmo convencidos disso, e seja essa vitória o que for, reside na expectativa, pelo menos de Borrell e dos seus companheiros, de conseguirem, da parte dos respectivos eleitores, a cobertura para continuarem a política de retirar o dinheiro que lhes é devido em prestações para o queimarem, literalmente, em armamento, que se vai a ver, em 12 meses, tem servido para o exército ucraniano ir progressivamente recuando, sabe-se lá até onde. É que a lógica, no campo de batalha, é a de que quem tem oportunidade para avançar avança, não está a olhar para linhas vermelhas. Se, até ao fim do conflito, derem oportunidade aos Russos para ultrapassarem as fronteiras do Donbass, eles não terão qualquer preconceito em as ultrapassar. A razão diz-nos, então, que para que isso não suceda, para que os avanços parem no momento em que agora estão, por exemplo, seria necessário que a UE/Estados Unidos da América (EUA) se prontificassem a tomar a iniciativa para que os combates terminassem e fossem retomadas as conversações entre a Rússia e a Ucrânia, como já aconteceu no início do conflito. Seria nessas condições que as disputas territoriais poderiam ser mais bem resolvidas, especialmente o estatuto desses territórios. Em vez disso, a histeria tomou conta daquelas almas, perdidos que estão a empurrarem uns para os outros o que já não querem decidir. Almas aflitas. 

3 – Está instalada a mais descarada hipocrisia no Ocidente. Na iminência de uma pesada derrota, estão a prometer ao governo ucraniano, nuns casos, o que já decidiram que não vão dar, noutros, a sucata de que se querem ver livres. Isto dura há meses, sinal, por outro lado, das fracturas insanáveis com que se estão a debater. Há, porém, um slogan, que já não passa disso, que todos entoam, a convicção vai variando, logo que se passa a fronteira ocidental do país invadido: a Ucrânia vencerá.

(Créditos fotográficos: Anatolii Stepanov / AFP – dn.pt)

Que o presidente do país o afirme e termine todas as comunicações com ele, é compreensível, seja lá o que for a vitória. Estar, reiteradamente, a oferecer a quem pede o que não vai ser dado, merecia da parte do povo ucraniano uma manifestação na praça Maidan para repudiar a hipocrisia da Casa Branca/UE, e os meus pontos de vista sobre o assunto são conhecidos. Não é que deseje que continue a ser despejado naquele país toneladas de armamento e de euros. Porém, em vez da mentira, seria mais útil a frontalidade e utilizar todos os canais de que estes países dispõem para fazer chegar ao governo ucraniano a solução mais realista de todas, que não é só de hoje, foi a do dia seguinte à invasão: trabalhar-se num acordo paz. Se esse não for o ponto de partida, se a vitória militar constituir a única saída para o conflito, o risco para os Ucranianos é as tropas russas chegarem a Lviv. Aproveite-se, pois, a proximidade da época carnavalesca, para cada uma das partes se vestir ou de Arlequim ou de Manjerona, para poderem estar mais à vontade para negociar. Esqueçam os amigos ocidentais, pensem e decidam pelas vossas cabeças, que vos ia ficar tão bem. 

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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06/03/2023

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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