Diário de guerra (XIV)

 Diário de guerra (XIV)

(© UNICEF/UN0770704/Filippov)

1 – A menos que a razão desça sobre as cabeças dos governantes ocidentais, tal como a situação tem vindo a evoluir, haverá uma confrontação armada entre o ocidente e os países que se opõem ao domínio anglo-americano. Pelo que vou dando conta do que é relatado em jornais e em plataformas estrangeiras, o alinhamento entre aqueles países tem vindo progressivamente a fazer-se, uns explicitamente, outros invocando os interesses das respectivas populações. E também a recusa de fazerem o papel de idiotas úteis ao serviço dos interesses do imperialismo norte-americano.

Militares ucranianos. (Créditos fotográficos: Vadim Ghirda/AP Photo – valor.globo.com)

Além disso, o fracasso sistemático do governo ucraniano em conseguir levar de vencida os avanços das forças armadas russas, de que o último exemplo é a tomada de Bakhmut, está a servir de argumento para equipar as forças armadas ucranianas com equipamento cada vez mais sofisticado, capaz de atingir alvos dentro da Rússia.

Se, nestes quinze meses que leva a guerra, o recurso a armas com poder de destruição maior ainda não foi accionado, a necessidade de justificar as toneladas de dinheiro que têm sido lançadas sobre a Ucrânia está a criar um ambiente de hostilidade que está a levar a execuções sumárias de prisioneiros por parte do exército ucraniano.

Sucessivamente, passo a passo, esta guerra tem vindo a queimar as etapas que poderiam dar acesso à resolução do conflito pela via diplomática. Chegou-se agora ao ponto em que, quem ganhar, as consequências disso irão fazer-se sentir por muitas dezenas de anos, uma vez que já não existe só uma frente. A Ucrânia e Taiwan irão ditar a sorte do euro-pacífico e do ocidente. São as duas frentes que estão em causa, sendo que o resultado da primeira condicionará necessariamente o da segunda.

O ministro da Defesa chinês transmitiu, recentemente, a posição de Pequim sobre Taiwan ao ministro da Defesa de Singapura, segundo revelou o porta-voz do exército chinês. Ou seja, Pequim não vai “de maneira alguma” renunciar ao uso da força para alcançar a reunificação com Taiwan, nem tolerar que Taipé procure apoio internacional para conseguir a independência do território. (cnnportugal.iol.pt)

A derrota dos Russos na Ucrânia seria a condição necessária para a derrota da China em Taiwan, e o que importa ao imperialismo não é tanto a Ucrânia, é a expansão para oriente, são os recursos e o domínio dos mercados dos países daquela zona do globo. O panorama apresenta-se, por isso, sombrio. Aos poucos, as sombras foram caindo sobre nós, os europeus, e os nossos governantes já nem se questionam, se é que alguma vez o fizeram, sobre que futuro nos espera. Deixam que a voz do outro lado do oceano lhes diga o que devem fazer.

2 – Diz quem sabe, e que por lá passou, que de promessas está o Inferno cheio. Pela parte que me diz respeito, direi que é o que está a acontecer ao presidente da Ucrânia e à guerra que por lá está a acontecer, já lá vão 15 meses. Não há dia que passe que não se diga que o presidente da Rússia está cada vez mais isolado, agora a propósito do périplo do governante ucraniano pelas capitais europeias e da sua presença em Hiroshima, na cimeira do G7 (grupo dos ditos sete países mais industrializados do Mundo).

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, na chegada ao Japão,
para participar na cimeira do G7.
(Créditos fotográficos: KYODO – sicnoticias.pt)

O périplo é factual, assim o dizem os órgãos de comunicação social, e os comunicados dos governos confirmam as promessas. Sendo isso assim, é pouco. Esta guerra não é sobre quem anda na passadeira vermelha a mostrar a farda n.º 2, considerando que os corredores do Kremlin são muito mais extensos que os de Downing Street ou do Eliseu. Mas, tratando-se de guerra, e desejando o presidente ucraniano vencer o conflito no campo de batalha, há um pormenor que lhe escapa no momento do cumprimento das promessas, a entrega do prometido.

Dinheiro é o que não falta, basta pôr as rotativas a trabalhar mais umas horas extras e tudo fica resolvido. O Diabo, já que se trata do Inferno, está no equipamento bélico, que, a julgar pelas folhas de entrega, dava para as forças armadas ucranianas já estarem na Praça Vermelha e Vladimir Putin no Tribunal Penal Internacional. Não sendo assim, estando-se a assistir ao recuo constante do exército ucraniano, de que a frente de Bakhmut é um exemplo, os responsáveis ocidentais dificilmente estão virados para a aceitação de uma despesa que sabem ir pelo cano abaixo.

(google.com/maps)

É que não se trata da caça aos coelhos, a cada hora que passa, os ocidentais estão a enfrentar umas forças armadas bem treinadas, que aprenderam com os erros das primeiras semanas e que passaram a contar com todo o tipo de equipamento sofisticado, e em quantidade. No meio de promessas e de vaidades, que o símbolo de Hiroshima consiga inspirar as cabeças presentes na reunião e que sirva para o caminho da paz ser encontrado, porque, no caso, não existe outro caminho senão o do compromisso entre os vários interessados. Hiroshima como o palco para o fim das hostilidades poderá ser um começo promissor.

3 – Amílcar Falcão, reitor da universidade de Coimbra, demitiu Vladimir Pliassov, o professor russo que leccionava naquela instituição há 35 anos e que fundou o Centro de Estudos Russos da Faculdade de Letras. Já aposentado, continuava a colaborar gratuitamente com a universidade, até ao dia 10 de Maio, quando recebeu um e-mail a despedi-lo sem qualquer explicação.

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. (noticias.uc.pt)

Tudo porque dois ucranianos tinham publicado um artigo de opinião no Jornal de Proença, mais tarde citado pelo pressuroso José Milhazes no seu habitual espaço da SIC, denunciando que Pliassov era um espião a trabalhar para os serviços de espionagem russos. Sem o confrontar com as razões por que era despedido, ao professor Falcão bastou-lhe o artigo de opinião e a voz do comentador da SIC para justificar a decisão. Isto passa-se 50 anos depois de Portugal ter saído de uma ditadura, também ela de quase meio século, mas em que uma denúncia é razão suficiente para exclusão. Pergunta-se: pode tal pessoa continuar a envergonhar a democracia mantendo-se no cargo para que foi eleito? Deve o professor Falcão ser exemplo para os milhares de alunos que frequentam aquela universidade? É legítimo que aquele reitor se tenha transformado num troll e não haja quem lhe aponte a porta de saída? Não, o reitor Falcão, a partir de 10 de Maio, deixou de ter condições para continuar a governar a universidade de Coimbra.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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15/06/2023

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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