Diário de guerra (XIX)
1 – Com quatro mil crianças mortas, segundo o que a comunicação social de hoje dá conta, pelas suas forças armadas, Israel está transformado num estado terrorista. Já o tinha avisado quando colocou como um dos seus objectivos da invasão da Faixa de Gaza aniquilar quem fizesse parte do Hamas, varrer da face da Terra quem pertencesse ou se suspeitasse que pertencia àquela organização palestiniana. Porém, se esta é a estratégia para conseguir libertar os reféns detidos pelo Hamas, a continuar por este caminho, pode acontecer que os venha a encontrar todos mortos. Não tanto porque tenham sido liquidados pelo Hamas, mas porque se transformaram em danos colaterais do seu morticínio. O resto da história já a vimos contada noutro palco, foram os outros que os assassinaram brutalmente com um tiro na nuca.
2 – Depois de alguns dias em que o assunto era o conflito em Gaza, os sionistas conseguiram que a comunicação social desmobilizasse e o comece a tratar como uma desavença entre rivais. Basta ler os jornais de terça-feira (7 de Novembro) e ouvir as primeiras notícias da manhã para nos darmos conta do espaço e do tempo que foi dedicado à invasão que, no dia anterior (segunda-feira), teve início com centenas de palestinianos mortos pela aviação e pela artilharia israelita. E veio-me à memória o que foram meses seguidos do massacre noticioso sobre a guerra na Ucrânia, em que as notícias que nos chegavam eram as que importava para virar a opinião pública contra a Rússia, e assim justificar os milhões de dólares que eram constantemente despejados sobre o governo de Kiev.
Nesta vez, já nem o sul da Faixa de Gaza escapa, os palestinianos que lá vivem estão encurralados por todos os lados, o cerco completou-se com os porta-aviões americanos deslocados para a costa da Faixa de Gaza. Também as imagens que nos chegam da destruição de Gaza não impedem que o massacre continue. Não há quem, com poder e autoridade, se oponha a ele. Estou para ver o que vai acontecer aos apontados crimes de guerra cometidos pelo exército russo, agora, que está em marcha o genocídio de uma população. É que ainda não se ouviu falar no Ocidente em Tribunal Penal Internacional, nem na deslocação de juízes daquela instituição aos locais dos crimes, que é só um lugar, toda a Faixa de Gaza. Quando, daqui a algum tempo, todos os mortos da guerra estiverem enterrados, cairá sobre o Ocidente um enorme manto de vergonha por terem trocado o direito à liberdade e à independência pela hipocrisia política, sem darem conta de que estão a contribuir para que os valores da democracia estejam a ser lançados diariamente para o esgoto da História.
3 – O secretário-geral da Organização das Nações Unidas disse o que era necessário dizer, com a autoridade que o cargo lhe confere. Pela coragem demonstrada, temos a obrigação de o saudar e defender dos ataques que a extrema-direita israelita lhe dirigiu. Se havia dúvidas sobre a natureza extremista do governo israelita, aí está a reacção às suas palavras, insultando-o como ainda não se tinha visto. E, no entanto, o que ele afirmou é da mais elementar clareza: não se pode matar indiscriminadamente a população da Faixa de Gaza. Ele não o disse, mas isso é um crime de guerra. Manter um milhão de palestinianos aprisionados e vulneráveis ao espírito de vingança do governo israelita é um crime contra a Humanidade, é um acto de genocídio. Que nem é escondido por Benjamin Netanyahu ao afirmar que é seu propósito exterminar o Hamas. Os considerados inimigos vencem-se, consoante os casos, pelas armas ou pela via diplomática. O recurso ao extermínio é um acto próprio de criminosos, e como tal devem ser tratados, nada menos do que isso. Por tudo isso, aqui se manifesta o reconhecimento a António Guterres pelo papel que tem desempenhado neste conflito, não se vergando às regras da diplomacia conveniente.
4 – Onde termina o direito de Israel a defender-se? Por este caminho, num cemitério da Faixa de Gaza a enterrar os palestinianos que lá permanecerem. É o que as televisões nos vão dando conta com a destruição da cidade de Gaza, já grande parte dela reduzida a escombros. Por estes dias, os dois milhões que vivem no território, e que nunca se insurgiram contra o governo do Hamas, tornaram-se em dois milhões de refugiados à mercê de um Estado terrorista que não chega a perguntar, mata de imediato, aplicando a “lei do olho por olho, dente por dente”. Só que, naquela zona do planeta, a lei passou a ser outra, um olho para dez pares de olhos, um dente pela dentadura de um palestiniano.
É nesta proporção que os Palestinianos têm vivido, há 75 anos. O Hamas e o Hezbollah são filhos desta desproporção, porque a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) não está talhada para ela, para dar combate a um Estado terrorista. Tudo o que acontece hoje não chegou de coisa nenhuma, tem um começo, um desenvolvimento e a sua consumação. O “Setembro Negro”1 dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, foi o mais sério aviso do que se ia passar a seguir. Várias gerações de palestinianos nasceram, viveram e morreram sem conhecer o que era viver num território livre de ameaças de destruição. E por muita devastação que cause, os governos de Israel irão ter de enfrentar sempre estes deserdados da liberdade até ao dia em que o povo de Israel decida que chegou o momento de pôr cobro às matanças. Até essa eventualidade, ficam as declarações, as reuniões, os encontros, os apertos de mão, os ódios, as ajudas transportadas pelos trucks, como afirmou o secretário-geral das Nações Unidas: “São necessários, mas não são suficientes”.
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Nota da Redacção:
1 – Como regista a Wikipédia, o Massacre de Munique, também conhecido como Tragédia de Munique foi um atentado terrorista ocorrido durante os Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, na Alemanha, quando, em 5 de Setembro, onze integrantes da equipa olímpica de Israel foram feitos reféns pelo grupo terrorista palestiniano denominado “Setembro Negro”, sendo, até hoje, o maior atentado terrorista já ocorrido num evento desportivo.
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Nota do Director:
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09/11/2023