Diário de guerra (XV)
1 – A hipocrisia do Ocidente, que enche a boca com a defesa dos direitos humanos, mantém o seu propósito de subjugar a Rússia, aproveitando a oportunidade que a invasão da Ucrânia lhe proporcionou. Elenna Basile, escritora e ex-embaixadora da Itália na Suécia e na Bélgica, num artigo publicado no jornal Fatto Quotidiano, dá-nos conta de um número que deveria envergonhar todos quantos continuam a lançar biliões de dólares e a encaminhar armamento para aquele país; desde o início da guerra já morreram 250 mil crianças. Este dado deveria fazer corar de vergonha os rostos dos governantes europeus e norte-americano, e em consequência, dada a gravidade do acontecimento, levá-los à mesa das negociações sem condições prévias, como o presidente ucraniano quer impor.
E continua a ser uma hipocrisia continuar a argumentar que foi a Rússia a invadir o território ucraniano, fazendo de conta que, desde esse ponto de partida, pode valer tudo, até duzentos milhares e meio de jovens e outros tantos milhares de mortos ucranianos. Por outro lado, não se vê um gesto de paz desses responsáveis, uma declaração pública a afirmar que chega de contra-ofensiva, que o caminho que previne mais mortes é o que leva ao cessar-fogo e à mesa das negociações. Terá de ser a opinião pública a exprimir a sua indignação, exigindo aos seus governos mais respeito por quem está a ser lançado para a morte na Ucrânia.
2 – Foi um espectáculo doloroso de se ver, assistir aos quase lamentos da turma dos comentadores televisivos do costume por a golpaça wagneriana ter falhado. Queriam ópera, mas levaram com um espectáculo bimba. Ainda ontem, só faltava sentenciar o homem ao extermínio. Hoje, desejam que ele não fique por aqui, que, lá ao longe, no papel de guarda fronteira, comande os músicos no assalto ao Kremlin.
Solta-se-lhes a língua e aí vai veneno para as repercussões do acontecimento. É vê-los a debitar narrativas sobre os seus resultados, sem informação que suporte as suas previsões. Era o que lhes chegava ao aparelho fonador naquele momento. E aí vai, se não tem contraditório, dá direito a qualquer baboseira. Tudo para escaqueirar o princípio da liberdade de imprensa, que deveria saber vigiar-se, auto-regular-se. Em vez disso, tem frequentemente servido para encher de lixo as notícias que nos vão chegando.
3 – Se a generalidade dos comentadores, mesmo na hora de o Wagner depor as armas, ainda balbuciava umas quantas teorias sobre o abalo que a intentona iria provocar na esfera do poder russo, já os jornalistas foram mais cautelosos, agarrando-se à ideia de que o presidente russo teria saído fragilizado de 12 horas de ocupação da cidade de Rostov.
O problema dos jornalistas e comentadores ocidentais é o seu eurocentrismo, a extrema dificuldade em analisar os acontecimentos verificados fora da sua matriz cultural. Ao cabo de tantos anos, partindo do princípio de que não é intencional, continuam a interpretar as movimentações políticas, lá longe, como se estivessem a acontecer do outro lado da fronteira, em Badajoz, por exemplo. Passando em revista o que se escreveu e disse sobre a tentativa de golpe de Estado, o discurso pouco diferia, tinha como pano de fundo o critério da contribuição que isso poderia dar à guerra na Ucrânia, sem cuidarem que, nesta altura, qualquer substituição violenta na esfera do poder russo iria provocar graves convulsões não só internas como nos países limítrofes. E esses, sim, poderiam desencadear um conflito europeu de dimensões imprevisíveis.
Por isso, se a comunicação social quiser desempenhar um papel histórico neste conflito, é dar a conhecer o que se está a passar não só na frente de batalha, mas também na retaguarda, onde decorrem, continuamente, tentativas de se passar à via diplomática de resolução do conflito. O constante enviesamento, através da selecção do que vai ser transmitido, só prejudica a tomada de consciência imparcial de quem ouve e lê as notícias, deixando-se os comentários para quem é pago para o efeito. A paz também passa por aí, pela aceitação e pela exigência de que se calem as armas.
4 – Está em curso uma tentativa de golpe de Estado na Rússia. O seu responsável foi o primeiro ganhar os galões em Backmut, para, agora, se apresentar nas ruas de Rostov com a auréola de herói nacional, na tentativa de legitimar esta acção aos olhos da população e ganhar o seu apoio. Compreensivelmente, escolheu um alvo do governo russo, o diferendo com o ministro da Defesa, como ́álibi para se lançar no golpe. Se este método não faz parte das técnicas de golpe de Estado, é uma sua variante. Não existem golpes de Estado by the book, os golpes adaptam-se às circunstâncias, e este foi moldado pela guerra na Ucrânia. Uma coisa é já certa, e serve como lição, seja qual for o juízo que se faça sobre o que está em jogo, delegar noutros a condução de uma frente de combate é correr o risco de se acordar com as armas a bater à porta.
A existência de exércitos privados, na Rússia, poderá ser explicada pelas condições particulares em que foi autorizado a ser criado. Pelos vistos, a proximidade entre o líder do Grupo Wagner e o presidente russo. Por outro lado, não é de excluir o trabalho desenvolvido pelos serviços secretos ocidentais no aliciamento de figuras próximas do regime. Aliás, a condução deste conflito está constantemente a ser orientada por aqueles serviços, tanto de um lado como do outro. É sintomático que o presidente da Ucrânia tenha recebido instruções para não se aproveitar militarmente da situação, que aguardasse pelo desfecho da tentativa de golpe de Estado. Ou seja, a NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é wagneriana, escolheu o Parsifal do Santo Graal, Moscovo, para o entregar ao Ocidente. Seria um trabalho limpo: portas abertas para 300 milhões de consumidores, o acesso aos incomensuráveis recursos naturais do país e o desequilíbrio da geoestratégia mundial. Descontando os mortos da guerra, pode-se dizer que seria um preço de saldo. Rostov passaria a constar dos manuais de História com um capítulo dedicado às consequências das amizades com Wagner.
5 – Atente-se nos seguintes dados, referentes ao valor dos recursos minerais que estão, actualmente, em fase de exploração na Rússia. São 396 biliões de euros em petróleo, 113 bilhões em gás, 20 biliões em carvão, oito biliões em ferro, cinco biliões de diamantes, cinco biliões em ouro. Tudo somado são 547 biliões de euros, ou 54,7 triliões de rublos. Isto, só para falar das principais reservas naturais em processo de exploração. Estou certo de que são estas as principais razões para se ter começado a armar a Ucrânia, à sombra do embuste dos acordos de Minsk II, seguidas do investimento que o governo dos Estados Unidos da América, leia-se, o capitalismo ocidental, está a fazer com a canalização, até ao momento, de 92 bilhões euros para alimentar a guerra na Ucrânia.
A este custo devem somar-se os milhares de mortos verificados em território ucraniano e os muitos milhões com a destruição de bens materiais. É esta a realidade material desta guerra, os esforços para o regresso aos tempos de Ieltsin, quando a Rússia era objecto de pilhagem para quem quisesse engordar rapidamente a conta bancária; e pasto para as grandes empresas poderem retribuir os accionistas com dividendos chorudos.
A questão da geoestratégia só é relevante para situar o valor dos países em conflito quando se trata do acesso aos recursos de uma das partes, no caso, da Rússia. Não significa que a Ucrânia não tenha valor para o capitalismo ocidental. Tem, desde logo pelo cultivo de cerais, como é sabido, e pelos seus portos no Mar Negro, importantes para as exportações dos países da Europa Central. É por isso que, desde o início, se confrontam dois pontos de vista, os de quem deseja que o capitalismo imperialista saia vencedor para açambarcar o que a Rússia tem, e os que defendem que o regime capitalista deve aplicar o princípio que está inscrito nas suas tábuas sagradas, a livre concorrência. Até um dia.
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Nota do Director:
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06/07/2023