Diário de guerra (XVI)
1 – Neste fim-de-semana (nos dias 5 e 6 de Agosto), foi discutido, por quase 50 países, mais um plano de paz para o conflito entre a Rússia e a Ucrânia1. Embora se compreenda uma das exigências do governo ucraniano – retirada das tropas russas dos territórios anexados –, sabe-se que, na actual situação, é uma condição que o governo russo não aceita. Seria o reconhecimento de que a invasão não tivera propósitos políticos e de que fora, antes, um acto voluntarista de quem a pensou e planeou. Ou seja, uma aventura com o propósito de explorar e de perceber que tipo de resposta a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO) tinha guardada. Não sendo isso o que se trata – pois, as acções conhecidas do governo russo têm ido no sentido de garantir a autonomia do Donbass, defendendo esse território das investidas das forças armadas ucranianas –, da reunião de Jidá (ou de Jeddah, na Arábia Saudita) pouco se deveria esperar.
As implicações políticas daquela exigência de Kiev são de tal monta que aceitá-las daria origem a uma mudança de governo na Rússia e ao regresso do mundo unipolar, em fase acelerada de desagregação. A menos que o Ocidente deseje ter uma guerra para durar na fronteira oriental da Europa, dando ensejo a que as organizações de extrema-direita vão tomando o poder, para serem elas, depois, a negociar a paz. Mais valia que as propostas de calar as armas não se referissem à retirada das tropas russas. A acontecer, seria mais uma eventual consequência do que uma condição. E que enfrentar a Rússia militarmente, mesmo fazendo de conta que a NATO não está envolvida, é um desafio que só poderia terminar com a derrota de um dos lados. Foi laboriosamente criada, na opinião pública, pelos órgãos de comunicação ocidentais, a ideia de que tal resultado pode ser obtido. Teoricamente, pode. Porém, presumo que também já foram feitas as contas a essa vitória. E quem ficaria mais a perder, dado o patamar de vida em que se encontram, seriam sempre os europeus, porque teriam anos seguidos de limitações em todas as esferas da vida: emprego, salários, habitação, saúde. Mais vale, então, perguntar a quem vive naquela região a que lado desejam pertencer: na Ucrânia, na Rússia ou num território politicamente autónomo?
2 – O principal fornecedor de armamento às forças armadas ucranianas é o governo dos Estados Unidos da América (EUA), como é sabido, através do complexo militar-industrial, que viu cair no prato um montão de biliões de dólares. Entre as encomendas que seguiram para Kiev, juntam-se as bombas de fragmentação, que servem não só para matar os militares que se estão a enfrentar, no caso, russos, como o que estiver vivo à sua volta. Tudo isto é conhecido.
O que estava guardado para esta ocasião, perante o coro de protestos sobre o uso desta arma, era a divulgação da habilidade dos militares ucranianos na utilização desta bomba. Certamente, treinados pelos especialistas americanos do assunto, os militares ucranianos utilizam-nas não só de forma eficaz, mas também adequada. Tanto quanto se pode perceber desta qualidade, a bomba só passou a matar militares, terá um dispositivo de Inteligência Artificial (IA) que reconhece quem é militar e quem não e, assim, distinguir os que são russos dos que são ucranianos. É o admirável mundo tecnológico de matar soldados a entrar em acção. O algoritmo da bomba sabe, quando esta é lançada, que está em território ucraniano, que o alvo são fardas militares, vestidas por militares vindos do outro lado da fronteira, e que é para acertar em cheio. Se não acertar, fica para a próxima. Mas estão excluídos os civis ucranianos, bem como poderão ser reconhecidos os novos, os velhos, os homens, as mulheres, as crianças, os mercenários ou ainda os indivíduos americanos, polacos, ingleses, eslovacos e por aí fora. Diariamente, há uma história, uma novidade, para contar desta guerra. Desta vez, a sorte calhou às bombas de fragmentação, “adequadas e eficazes”. Se alguém – civil – morrer, não foi da bomba, foi do tiro de um russo.
3 – A comunicação social deu conta do extremo desagrado do presidente ucraniano com as conclusões da cimeira da NATO. Se ainda não lhe fora dito, aí está como a Casa Branca trata quem lhe mendiga os favores. É o preço que se paga por não se ter voz própria, nem capacidade para se ser autónomo nem tomar decisões. É que a retórica belicista serve, exclusivamente, os interesses da indústria de armamento. Por isso, a guerra tem de durar, durar, durar…
As belas palavras dos chefes de governo ocidentais e as constantes e comoventes visitas a Kiev, para “número” ou espectáculo televisivo, servem só para manter o presidente ucraniano na ordem, alinhado com as expectativas que lhe criaram: um dia a Ucrânia será da NATO e da União Europeia. Até então, os valores patrióticos por todos invocados têm como finalidade edulcorar os constantes desaires das forças ucranianas, mas incitando-as a continuar a dar o melhor de si. É neste ambiente de soturno desânimo ocidental que vivemos, com os governantes a não saberem que respostas dar ao povo, enquanto o povo está saturado de pagar os milhões que, diariamente, são canalizados para a guerra. Não fossem os órgãos de propaganda – televisões e jornais – e, há muito, as armas já se teriam calado. Provavelmente, desde Maio de 2022, quando o Pentágono deu ordens a Kiev para acabar com as conversações com Moscovo.
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Nota da Redacção:
1 – Este artigo de Cipriano Justo foi escrito antes da reunião de Jeddah, na Arábia Saudita. No entanto, hoje (segunda-feira, 7 de Agosto), os órgãos de informação nacionais e internacionais dão conta de que, apesar de não ter havido um texto final do encontro, a presidência ucraniana faz balanço positivo da cimeira de paz e, também, de que a Rússia admite discutir conclusões com os parceiros do bloco BRICS (grupo de países de mercado emergente, considerando o seu desenvolvimento económico, de que se destacam o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul).
Como escreve a jornalista Ana Isabel Moura, no Jornal de Notícias (JN), a China, os EUA, a África do Sul, a Espanha ou a Alemanha foram alguns dos mais de 40 convidados que marcaram presença na reunião de paz promovida pela Arábia Saudita, que decorreu ao longo de dois dias e que chegou este domingo ao fim em Jeddah. “Andriy Yermak, chefe do gabinete da presidência da Ucrânia, que representou o país invadido, revelou que as conversações foram ‘produtivas’. Já a Rússia, que não participou no diálogo, promete ouvir os parceiros do bloco económico BRICS que voaram até ao Médio Oriente”, adianta o JN.
Sabemos também que Pequim pede mais uma ronda negocial, onde quer estar presente. Por sua vez, o Brasil critica a ausência russa neste encontro.
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Nota do Director:
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07/08/2023