Diário de guerra (XVII)

 Diário de guerra (XVII)

Ursula von der Leyen e Joe Biden. (ec.europa.eu)

1 – Para o Ocidente, a hipocrisia não tem limites. Sob o manto da defesa de um certo modo de vida confortável, esconde-se o desejo insaciável de obter cada vez mais dinheiro, a ganância. Numa primeira fase, ainda houve quem acreditasse na retórica de Joe Biden e de Ursula von der Leyen: era preciso defender as famílias dos bárbaros das estepes. Dezoito meses depois, e começando-se a saber o que, no imediato, esta guerra pode render, algumas bocas começam a calar-se ou, pelo menos, a falar menos.

(Créditos fotográficos: AP – sicnoticias.pt)

Com uma contra-ofensiva que está a ser reconhecida por todos como um desastre, o silêncio começa a imperar nas chancelarias europeias. Aparecer ao lado do principal derrotado, a Casa Branca, seria politicamente comprometedor. Enquanto a derrota não chega, ao menos que se lucre alguma coisa com a guerra, que os Russos destruam o maior volume de material de guerra ucraniano para que a indústria de armamento não se queixe da conversa sobre as ideias de paz que andam por aí. Quando tudo acabar, alguma coisa se há-de encontrar para que o governo russo se fique pelo Donbass e pela Crimeia. Hão-de lembrar-lhe que, afinal, era a sua intenção, quando lançou a operação militar contra a Ucrânia. 

2 – Bem procurei, mas em vão. Nem nos jornais nem nas plataformas digitais havia referência ao acontecimento. E, no entanto, se a comunicação social fosse isenta, seria obviamente motivo de notícia, logo na primeira página, dada a inusitada, de quem vem, declaração perante quem estava presente. Isto aconteceu ontem à noite, quando o Presidente da República se deslocou a uma iniciativa do Partido Social Democrata e declarou que sempre criticou a proibição da divulgação da cultura russa, a propósito da invasão da Ucrânia. De facto, proibir a divulgação das obras de Alexandre Pushkin, de Piotr Ilitch Tchaikovski ou do cineasta Andrei Tarkovski – e poderíamos ir também ao desporto – é transformar estas manifestações em objectos de sanções, do tipo das da rede multinacional de “fast food” MacDonald’s Corporation.

O Museu Hermitage, localizado em São Petersburgo, é um dos maiores museus de arte do Mundo. Foi fundado, em 1764, pela imperatriz Catarina, a Grande. (musement.com)

Isto, sim, foi uma manifestação de fanatismo por parte de quem, na União Europeia, estaria disponível e pronto a deitar fogo ao Museu Hermitage, se tal garantisse a vitória da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) sobre a Rússia. Aquele gesto foi uma manifestação de quem tem destas demonstrações uma exclusiva visão utilitarista, servindo propósitos equivalentes aos dos tanques de guerra Leopards. Esta foi a primeira parte. A isto chama-se o “espírito da derrota”.

A segunda parte do mesmo assunto consistirá em saber-se o modo como esta sanção pode ser revertida quando tudo terminar. Que argumentos irão ser apresentados aos Russos para regressarem às livrarias, aos teatros, aos cinemas, aos estádios? Presumo que nenhuns. Da acta final da reunião também constará o fim destas proibições, como as da multinacional MacDonald’s às ruas de Moscovo. Para a Casa Branca e para a Comissão Europeia é tudo igual, tudo é igual a um hambúrguer.

3 – Toda a comunicação social foi noticiando, ao longo das semanas, a importância que o Grupo Wagner teve na tomada de Mariupol, reconhecida, também, pelo governo russo.

Tomada de Mariupol, alvo estratégico na guerra na Ucrânia. (g1.globo.com)

Sabe-se, também, que o Grupo Wagner era o equivalente a um exército privado, de que Yevgueny Prigozhin era proprietário. Aliás, o que era para conhecer deste grupo era já conhecido, embora também se saiba que só era conhecido o que era para conhecer. Ou seja, o que lhe podia dar visibilidade pública e ser útil nos seus objectivos. Sendo privado, estava no mercado, tirando vantagens da publicidade que, em todo o Mundo, lhe têm feito. No nosso planeta, há sempre um conflito a precisar da ajuda ou do complemento de um exército privado. Muitos dos conflitos armados existentes vão ao mercado em busca de quem faça os serviços que não têm capacidade de executar, se quiserem ter sucesso na contenda.

O caso de Mariupol é exemplar. Consistiu em combater, ao longo de dezenas quilómetros de túneis, o Batalhão Azov, destacado para defender aquele complexo industrial, em condições que um exército regular não estaria apto a fazer. Porém, daqui até ao facto de o presidente ucraniano afirmar publicamente que estava satisfeito com a morte de Prigozhin vai um abismo.

O fundador do Grupo Wagner, Yevgueny Prigozhin, liderou um motim contra o Kremlin, em 24 de Junho. (Créditos fotográficos: AFP PHOTO / Telegram channel of Concord group – brasildefato.com.br)

O governante tinha razões suficientes para o considerar não um adversário, mas um inimigo. Afinal, ele fora o principal responsável por uma derrota que o tinha humilhado, por muito que os comentadores afirmassem, posteriormente, que Mariupol não passava de uma aldeia. Contudo, os valores morais do presidente ucraniano ficaram seriamente comprometidos com aquela afirmação.

Se noutras condições, mesmo para os adversários há sempre uma palavra de condolências, mesmo circunstancial, nesta situação exigia-se, pelo menos, o silêncio. Todos entenderiam o seu significado. Creio, por isso, que desta vez, os comentadores nacionais, para não se referirem ao assunto, deviam estar a jogar matraquilhos quando o governante apareceu, nos ecrãs das televisões, a dar-se por satisfeito com a ocorrência. Pelo que me diz respeito, foi uma estreia mundial. E, acreditem, já ando por cá há muitos anos!

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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07/09/2023 

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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