Diário de guerra (XVIII)

 Diário de guerra (XVIII)

(Créditos fotográficos: Sergey Bobok / Getty Images – sicnoticias.pt)

1 – Os desenvolvimentos mais recentes da guerra na Ucrânia não trouxeram notícias animadoras para o governo ucraniano. A juntar-se ao governo húngaro, que desde o início do conflito se distanciou de Kiev, na Eslováquia, e para o que interessa, o vencedor das eleições declarou que iriam acabar os apoios ao esforço de guerra da Ucrânia. Mas outros dois acontecimentos se lhes juntam: a suspensão do financiamento por parte da Casa Branca, e as medidas tomadas pelo governo polaco no sentido de cessar o envio de armamento, além da restrição da importação de cereais.

Cimeira de Granada. (dw.com)

Bem podem as reuniões que a Comissão Europeia vai realizando serem sempre “as mais importantes e decisivas”, de que a reunião de Granada é o último exemplo. A verdade é que tudo se esgota nas conferências de imprensa que vão sendo dadas no final. Compreende-se o propósito de manter a opinião pública alinhada com o discurso dominante, mas mesmo esse já conheceu melhores dias, basta ler o The Washington Post e o The New York Times, afinal, para o caso, os principais construtores do que se escreve e diz na imprensa ocidental. Tudo porque não se estão a ver resultados no esforço que está a ser desenvolvido vai para 20 meses, os stocks de armamento estão num limiar crítico. Em 2024, há eleições em alguns Estados, e as iniciativas de paz não vão além da vontade.

Com seis meses difíceis pela frente, num país em estado lastimável, a situação na Ucrânia não será particularmente favorável à conclusão da contraofensiva, tanto mais que os F-16 não chegam, e os Russos continuam a dominar os céus. Até parece que o governo norte-americano – qual Afeganistão 2.0 – se prepara para retirar da Ucrânia. Nesta vez, não são as tropas, mas os cheques.

2 – O artigo de opinião em causa, da autoria de Daniel Oliveira e intitulado “Dois equívocos ucranianos”, procura argumentar sobre a corrupção generalizada que se instalou no regime ucraniano, em que boa parte do dinheiro canalizado para as despesas que o governo tem de fazer ir parar aos bolsos de governantes e de oligarcas, cujo exemplo mais recente foi a demissão do ministro da Defesa. Mas, aparte isso, a parte chocante do artigo está nesta passagem: “Até porque o preço a pagar por não travar Putin é inimaginável. Fosse qual fosse o regime ucraniano.” Nesta declaração, o autor do artigo expressa uma certeza, a de que mesmo que o regime fosse nazi, estaria vedado a Vladimir Putin invadir a Ucrânia. Ora, de imediato se coloca a questão de o autor classificar a contraparte, segundo a bitola geralmente reconhecida, o regime russo. A não ser, imperial, nada mais é dito. E, no entanto, a Inglaterra já foi imperial e era democrática. A França já foi imperial e era democrática. Porém, com características diferentes das democracias liberais do Ocidente, a Rússia, ao fim de 30 anos do derrube do regime comunista, faz o seu caminho levando em conta o seu passado próximo e longínquo. É assim que os países se fazem à vida. Diríamos até que o actual regime ucraniano é um equivalente do regime russo do tempo de Boris Ieltsin, quando a Rússia era pasto da ganância dos oligarcas ocidentais, e a corrupção o modo de vida dos seus governantes.

Vladimir Putin (Créditos fotográficos: Sputnik / Kremlin – via
Reuters – japantimes.co.jp)

Por alguma razão, Bruxelas e a Casa Branca se querem ver livres de Putin. Não é pela Ucrânia, é pelo acesso fácil e directo às comodities russas. A guerra da Ucrânia é só um pretexto. Sabe-se, hoje, que foi longamente preparada pelo Pentágono. Mas a verdadeira questão que vale a pena ser discutida, principalmente nos tempos que correm, é saber se um regime deve ou não ser derrubado por forças exteriores. Estando fora de causa o derrube dos regimes democráticos. Isto é, ter e manter em regular funcionamento instituições democráticas. Foi por isso que, pessoalmente, condenei a invasão da Ucrânia, e não por razões morais.

Outra coisa é confrontarmo-nos com um regime nazi ou fascista, em que os direitos, liberdades e garantias foram lançados na fogueira, juntamente com os livros. É que a instauração de um regime nazi-fascista num país é uma ameaça para todos os países, vejam-se os exemplos conhecidos. O que deve valer mais, os valores democráticos ou os valores de um regime que instaura um clima de repressão e ódio, de tortura e de morte?

Forças alemãs marchando em Paris. (pt.wikipedia.org)

Sabemos como estes regimes se instauram. No caso alemão, a partir de eleições democráticas em que o partido nazi teve a maioria relativa, mas possuía as tropas de assalto ou secções de assalto lideradas por Ernst Röhm, que tomaram conta das ruas, ameaçando e impondo a ordem nazi. No caso italiano, a partir da marcha sobre Roma, em 1922, precedendo em 10 anos a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Considerando o que, actualmente, é vastamente conhecido desses regimes, enquanto ditaduras que ameaçam a destruição da democracia onde ela estiver instalada, é democraticamente lícito não se mexer uma palha para derrubar esses regimes, não tendo eles sido aprovados pelo povo? É que esses regimes representam uma usurpação de todos os direitos, pois são os carrascos da democracia. Direi, por isso, que em tal situação, caso ela regressasse, existiria toda a legitimidade para derrubar esses regimes a partir do exterior. Quer fosse por parte do regime russo, do regime espanhol ou do regime grego, estaria em causa um bem maior, a liberdade, que não conhece fronteiras nem quid pro quo (ou seja, tomar uma coisa por outra) no foro jurídico.

3 – Como se já não bastassem as sanções económicas, o presidente francês (Emmanuel Macron) tomou a decisão de proibir a bandeira da Rússia nos Jogos Olímpicos de Paris. Há muito que o espírito olímpico andava pelas ruas da amargura, mas agora vai-se mais longe. Os atletas russos que estiverem em Paris no verão de 2024, estarão como pertencendo a lugar nenhum, como párias do planeta. Tendo sido criados há quase 30 séculos, o que se vai assistir, se a decisão for aceite pelo Comité Olímpico, é à transposição do espírito da guerra para dentro do acontecimento.

(turismogrecia.info)

Os livros dizem-nos que os Jogos Olímpicos terão entrado em declínio por razões militares, quando Esparta e Atenas se envolveram na Guerra do Peloponeso; e porque Élis, a região onde se situava Olímpia, se aliou a Atenas, quebrando, dessa maneira, a neutralidade que sempre tinha mantido. Pois bem, quase 30 séculos depois, a História tende a repetir-se: o território onde se vão disputar os Jogos Olímpicos alia-se ao Ocidente, desrespeitando o espírito que, durante duas semanas, deveria presidir aos Jogos. Proibir uma bandeira, em vez de cooperar, agrava o conflito. Em nada contribui para que que os Jogos, também eles, possam constituir um exemplo de paz. Enquanto instituição que deveria presidir ao destino das nações, a Organização das Nações Unidas, na figura do seu secretário-geral (António Guterres), tem a obrigação de se manifestar contra tal decisão, procurando dissuadir o presidente francês. Se, até então, nada acontecer na frente de guerra, que, pelo menos, os próximos Jogos Olímpicos contrariem o espírito de vingança que está a assolar quase todos os governos ocidentais.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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09/10/2023 

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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