Diário de guerra (XVIII)
1 – Os desenvolvimentos mais recentes da guerra na Ucrânia não trouxeram notícias animadoras para o governo ucraniano. A juntar-se ao governo húngaro, que desde o início do conflito se distanciou de Kiev, na Eslováquia, e para o que interessa, o vencedor das eleições declarou que iriam acabar os apoios ao esforço de guerra da Ucrânia. Mas outros dois acontecimentos se lhes juntam: a suspensão do financiamento por parte da Casa Branca, e as medidas tomadas pelo governo polaco no sentido de cessar o envio de armamento, além da restrição da importação de cereais.
Bem podem as reuniões que a Comissão Europeia vai realizando serem sempre “as mais importantes e decisivas”, de que a reunião de Granada é o último exemplo. A verdade é que tudo se esgota nas conferências de imprensa que vão sendo dadas no final. Compreende-se o propósito de manter a opinião pública alinhada com o discurso dominante, mas mesmo esse já conheceu melhores dias, basta ler o The Washington Post e o The New York Times, afinal, para o caso, os principais construtores do que se escreve e diz na imprensa ocidental. Tudo porque não se estão a ver resultados no esforço que está a ser desenvolvido vai para 20 meses, os stocks de armamento estão num limiar crítico. Em 2024, há eleições em alguns Estados, e as iniciativas de paz não vão além da vontade.
Com seis meses difíceis pela frente, num país em estado lastimável, a situação na Ucrânia não será particularmente favorável à conclusão da contraofensiva, tanto mais que os F-16 não chegam, e os Russos continuam a dominar os céus. Até parece que o governo norte-americano – qual Afeganistão 2.0 – se prepara para retirar da Ucrânia. Nesta vez, não são as tropas, mas os cheques.
2 – O artigo de opinião em causa, da autoria de Daniel Oliveira e intitulado “Dois equívocos ucranianos”, procura argumentar sobre a corrupção generalizada que se instalou no regime ucraniano, em que boa parte do dinheiro canalizado para as despesas que o governo tem de fazer ir parar aos bolsos de governantes e de oligarcas, cujo exemplo mais recente foi a demissão do ministro da Defesa. Mas, aparte isso, a parte chocante do artigo está nesta passagem: “Até porque o preço a pagar por não travar Putin é inimaginável. Fosse qual fosse o regime ucraniano.” Nesta declaração, o autor do artigo expressa uma certeza, a de que mesmo que o regime fosse nazi, estaria vedado a Vladimir Putin invadir a Ucrânia. Ora, de imediato se coloca a questão de o autor classificar a contraparte, segundo a bitola geralmente reconhecida, o regime russo. A não ser, imperial, nada mais é dito. E, no entanto, a Inglaterra já foi imperial e era democrática. A França já foi imperial e era democrática. Porém, com características diferentes das democracias liberais do Ocidente, a Rússia, ao fim de 30 anos do derrube do regime comunista, faz o seu caminho levando em conta o seu passado próximo e longínquo. É assim que os países se fazem à vida. Diríamos até que o actual regime ucraniano é um equivalente do regime russo do tempo de Boris Ieltsin, quando a Rússia era pasto da ganância dos oligarcas ocidentais, e a corrupção o modo de vida dos seus governantes.
Por alguma razão, Bruxelas e a Casa Branca se querem ver livres de Putin. Não é pela Ucrânia, é pelo acesso fácil e directo às comodities russas. A guerra da Ucrânia é só um pretexto. Sabe-se, hoje, que foi longamente preparada pelo Pentágono. Mas a verdadeira questão que vale a pena ser discutida, principalmente nos tempos que correm, é saber se um regime deve ou não ser derrubado por forças exteriores. Estando fora de causa o derrube dos regimes democráticos. Isto é, ter e manter em regular funcionamento instituições democráticas. Foi por isso que, pessoalmente, condenei a invasão da Ucrânia, e não por razões morais.
Outra coisa é confrontarmo-nos com um regime nazi ou fascista, em que os direitos, liberdades e garantias foram lançados na fogueira, juntamente com os livros. É que a instauração de um regime nazi-fascista num país é uma ameaça para todos os países, vejam-se os exemplos conhecidos. O que deve valer mais, os valores democráticos ou os valores de um regime que instaura um clima de repressão e ódio, de tortura e de morte?
Sabemos como estes regimes se instauram. No caso alemão, a partir de eleições democráticas em que o partido nazi teve a maioria relativa, mas possuía as tropas de assalto ou secções de assalto lideradas por Ernst Röhm, que tomaram conta das ruas, ameaçando e impondo a ordem nazi. No caso italiano, a partir da marcha sobre Roma, em 1922, precedendo em 10 anos a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Considerando o que, actualmente, é vastamente conhecido desses regimes, enquanto ditaduras que ameaçam a destruição da democracia onde ela estiver instalada, é democraticamente lícito não se mexer uma palha para derrubar esses regimes, não tendo eles sido aprovados pelo povo? É que esses regimes representam uma usurpação de todos os direitos, pois são os carrascos da democracia. Direi, por isso, que em tal situação, caso ela regressasse, existiria toda a legitimidade para derrubar esses regimes a partir do exterior. Quer fosse por parte do regime russo, do regime espanhol ou do regime grego, estaria em causa um bem maior, a liberdade, que não conhece fronteiras nem quid pro quo (ou seja, tomar uma coisa por outra) no foro jurídico.
3 – Como se já não bastassem as sanções económicas, o presidente francês (Emmanuel Macron) tomou a decisão de proibir a bandeira da Rússia nos Jogos Olímpicos de Paris. Há muito que o espírito olímpico andava pelas ruas da amargura, mas agora vai-se mais longe. Os atletas russos que estiverem em Paris no verão de 2024, estarão como pertencendo a lugar nenhum, como párias do planeta. Tendo sido criados há quase 30 séculos, o que se vai assistir, se a decisão for aceite pelo Comité Olímpico, é à transposição do espírito da guerra para dentro do acontecimento.
Os livros dizem-nos que os Jogos Olímpicos terão entrado em declínio por razões militares, quando Esparta e Atenas se envolveram na Guerra do Peloponeso; e porque Élis, a região onde se situava Olímpia, se aliou a Atenas, quebrando, dessa maneira, a neutralidade que sempre tinha mantido. Pois bem, quase 30 séculos depois, a História tende a repetir-se: o território onde se vão disputar os Jogos Olímpicos alia-se ao Ocidente, desrespeitando o espírito que, durante duas semanas, deveria presidir aos Jogos. Proibir uma bandeira, em vez de cooperar, agrava o conflito. Em nada contribui para que que os Jogos, também eles, possam constituir um exemplo de paz. Enquanto instituição que deveria presidir ao destino das nações, a Organização das Nações Unidas, na figura do seu secretário-geral (António Guterres), tem a obrigação de se manifestar contra tal decisão, procurando dissuadir o presidente francês. Se, até então, nada acontecer na frente de guerra, que, pelo menos, os próximos Jogos Olímpicos contrariem o espírito de vingança que está a assolar quase todos os governos ocidentais.
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Nota do Director:
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09/10/2023