Diário de guerra (I)
1. Alguém, de que não me ocorre o nome, dizia que os jornalistas não estão imunes ao discurso dominante nem à propaganda. Com as variações que também são de esperar, há, porém, os que têm todas as vacinas em dia e os que nunca se quiseram vacinar, estando, por essa razão, mais expostos àquelas duas doenças. Se caminharmos da BBC para os canais portugueses de televisão, é isso o que se verifica.
Enquanto, na BBC, a citação das fontes do que se vai passando na guerra da Ucrânia faz parte da cultura editorial, no caso português, a regra é a omissão sistemática desse dever, configurando a ausência de respeito pelas pessoas que, diariamente, vêem e ouvem o que lhes é transmitido. Mas, como se já não bastasse, a infracção não termina aqui. Para não falar no alinhamento e na duração das notícias, é igualmente da sua responsabilidade os convites que são feitos para o comentário, os quais acabam também, vá-se lá perceber porquê, em recair, na grande maioria dos casos, em quem tem uma visão unilateral dos acontecimentos. O que é divulgado como notícias sai, assim, reforçado por alguém exterior às redacções, apresentado como representando um pensamento reflectido e amadurecido sobre o assunto. Vamos a ver, e não é que ambos coincidem? Eis, pois, o maravilhoso mundo da liberdade de informação e do direito a ser informado. E quem se atrever a apresentar outra versão dos acontecimentos vai para o rol dos que também invadiram a Ucrânia, desta feita por pensamentos e palavras, deixaram os actos para Putin.
2. Para além das acusações ad hominem (ou falaciosas), de carniceiro a genocida, que são capazes de tranquilizar quem as profere, sobretudo quando ditas diariamente, em modo quase ritualístico, boas como palavras-passe para se pertencer ao grupo, o que mais têm a oferecer os autores de tais acusações? Que contribuições têm na sua agenda para acabar de vez com a guerra na Ucrânia e estabelecer um sistema de segurança para todos na região? É que, nos primeiros tempos, a repetição ainda garante os seus efeitos purgatórios para o próprio e para o sentimento de pertença tribal, mas, com o passar do tempo, o organismo habitua-se e vai exigir o reforço da dose. Há mesmo quem tenha desenvolvido uma ecolalia (transtorno da linguagem caracterizado pela fala repetitiva) cujo tratamento é lento, obrigando-se à diminuição progressiva das expressões em causa.
Agora, imagine-se o que pode acontecer se a guerra termina e o acordo de paz é assinado. Deambular-se pela cidade em modo ecolálico não será, particularmente, confortável nem para o próprio nem para quem o rodeia. Mesmo quando a doença já atingiu o alto magistrado dos EUA, não significa que se tenha transformado no último grito da moda Primavera-Verão. Ela é mais o sinal da dificuldade em lidar com um acontecimento que não passou a barreira da emoção e ali ficou, alimentando-se do que a comunicação social vai diariamente debitando.
3. Conforme as fontes se vão afastando de Kiev, o número de militares russos mortos na Ucrânia vai variando. Serão entre cinco mil e 18 mil mortos, sendo a fonte deste número o governo ucraniano. O mesmo para a população civil morta, cujo número avançado pela Organização das Nações Unidas seria pouco mais de um milhar, mas que já estaria em várias dezenas senão centenas de milhar, a acreditar na contabilidade diária daquele governo. Segundo o especialista em assuntos militares Nuno Rogeiro, quanto aos militares, é fácil fazer as contas: contam-se as Berliets, os tanques e os aviões atingidos, faz-se uma estimativa da sua capacidade de transporte de militares e está feito o resultado. Quanto aos civis, o especialista não nos disse nada, presumo que por não ser o seu pelouro. O que está no segredo do presidente ucraniano é quantas baixas dos seus militares já se registaram desde o início da guerra. Na ignorância, os interessados teriam de perguntar a cada família ucraniana quantos dos seus, sendo militares, perderam a vida em combate. Uma vez que esta guerra tem várias frentes, sendo uma delas a da informação e da propaganda, tendo a informação sido transformada em propaganda e a propaganda em informação, é de crer que a ocultação daqueles valores seja intencional. Imagine-se que o número de militares ucranianos mortos era inferior ao número de militares russos mortos, lá vinha o senhor Biden pedir satisfações ao senhor Zelensky, porque ainda não tinha ganho a guerra e escorraçado os russos para as estepes; ou porque existe tanto território já ocupado pelos russos; ou porque anda a insistir com a adesão à NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) se, com os recursos que tem, consegue dar uma tareia nos generais russos, ao ponto de os conseguir matar. No outro cenário, os ucranianos terem mais baixas do que os russos. Então, a situação ainda seria mais grave, porque lá vinha o senhor Biden incomodar com o comentário: “Por esse caminho, não vão ter homens para o material que diariamente vos envio.” Ou, se a situação é essa, antes de ser obrigado a render-se, o melhor será avançar para as negociações de paz.
4. O tempo que a comunicação social portuguesa vai levar a desintoxicar-se irá ser demorado. Quem se habituou a drogas duras sabe que o processo de desabituação é sempre doloroso, por vezes, irreversível; e que as recaídas são frequentes e os efeitos secundários quase sempre inevitáveis, entre eles a desconfiança com que vão passar a ser encarados. Raramente o faço, mas hoje, porque considerei adequada à situação que vivemos, aí vai uma citação de Pacheco Pereira, retirada de um seu artigo de opinião: “Não basta ter uma boa causa, é preciso […] defrontar muitas questões de que a emoção não só não cuida, como cala.” Intencionalmente ou não, as opiniões sobre a guerra na Ucrânia têm vindo a ser construídas e transformadas em padrões de comportamento, com base na retórica e nas imagens que são transmitidas, nem sequer de mortos e feridos, mas de infraestruturas atacadas, cuja mistificação mais paradigmática foi o caso do ataque ao teatro de Mariupol – o principal campo de treino da extrema-direita internacional (Público, 21/06/2020) –, onde estariam mais de mil pessoas, tendo-se verificado um ferido, segundo fontes ucranianas.
Aliás, pode-se afirmar até que o desempenho da comunicação social neste conflito representa um case study, considerando a unilateralidade da informação que tem sido divulgada. Não é só nas ditaduras que esta unilateralidade consegue encaminhar as pessoas na direcção que se pretende, é também, está à vista, nas democracias liberais. Daí à exclusão e à punição das minorias desalinhadas vai um passo. Por isso, na presença de um acontecimento que envolve fenómenos vitais como é o caso da guerra, é desejável analisar-se o acontecimento por todos os ângulos, para se poder compreender as suas causas, o seu desenrolar e as suas consequências. A emoção só deve ser o primeiro filtro de análise e de reacção. É que desde o século XIX, com Louis Pasteur, John Tyndall e outros, a geração espontânea foi cientificamente refutada.
5. A invasão da Ucrânia pela Rússia será, infelizmente, um dos momentos para compreender a manipulação da informação que é fornecida aos cidadãos. O investigador Michael Butter teve recentemente publicado, em língua portuguesa, o seu trabalho A Natureza das Teorias da Conspiração, a que acrescentou o subtítulo Quando nada é o que parece, um livro que demonstra como se fabricam, desde há séculos, os mitos que substituem a verdade (DN). Poder-se-á dizer: “Não estará ele, também, a ser um manipulador?” Pode, mas neste confronto entre a manipulação e o rigor, passará muito tempo até que a verdade e a sua circunstância sejam apuradas, e só depois de aturada investigação. O que define se algo é correcto e verdadeiro é a prática histórica, como já ensinava Marx, na segunda tese sobre Feuerbach. Não há verdades absolutas, mas apenas verdades que se realizam na História.
05/04/2022