Directiva europeia contra processos judiciais abusivos

 Directiva europeia contra processos judiciais abusivos

Estas são as primeiras regras da UE para proteger os jornalistas de acções judiciais estratégicas (SLAPP). (Créditos fotográficos: Britta Pendersen / DPA/AFP – europarl.europa.eu)

“Toda a nossa liberdade depende da liberdade de imprensa”, afirmou o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, no contexto do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, assinalado na sexta-feira (3 de Maio), numa altura em que, como escreve o advogado Francisco Teixeira da Mota, ainda somos confrontados com “decisões lapidares” de tribunais portugueses na condenação de jornalistas pelo crime de violação do segredo de justiça.

O artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos é claro quando menciona que todo o indivíduo “tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. No entanto, os jornalistas – dos quais se espera que exerçam “com capacidade editorial funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões”, destinados a divulgação, “com fins informativos”, como evidencia a Lei n.º 1/99 (Estatuto do Jornalista) – são, não raras vezes, qualificados de censuráveis criminosos, mesmo quando, legitimamente, divulgam informações de manifesto interesse público, no rigoroso exercício do direito e simultâneo dever de informar.

(Créditos fotográficos: Marek Pospíšil – Unsplash)

Obviamente, as infrações cometidas no exercício dos direitos de liberdade de expressão e de informação (consagrados no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa – CRP) “ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respe[c]tivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”. A este respeito, o regime do segredo de justiça (contemplado com a revisão da CRP de 1982) beneficia de protecção constitucional (artigo 20.º/3 da Constituição: “A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.”) constitui um regime de reserva jurídica sobre o conteúdo dos actos processuais. Quer isto dizer que, ao abrigo desta reserva, é proibida a divulgação da ocorrência de actos processuais e informações relacionadas com a sua tramitação.

Tem razão de ser a aplicação automática do segredo de justiça? Não tem limites temporais? Quando podem os jornalistas informar a comunidade que os lê e ouve, sem serem acusados de causarem “impacto negativo” nas investigações criminais de factos e de operações ilícitas que se prolongam nos prazos e adensam dossiês?

Comissão Europeia mostrou estar “horrorizada” com o assassinato da bloguista e jornalista maltesa Daphne Caruana Galizia que investigava casos de corrupção. (pt.euronews.com)

São frequentes e muito prejudiciais (embora possam favorecer os verdadeiros criminosos) as diferenças de interpretação do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – a que corresponde o artigo 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE) –, mesmo reconhecendo que o exercício das liberdades de expressão e de informação “pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.

Concretamente, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem fundamentado rigorosamente as suas decisões perante a existência ou a inexistência de restrição no direito de informar, salvaguardando o bom nome e a credibilidade de muitos jornalistas. Porém, são cada vez mais recorrentes as acções judiciais estratégicas (com manobras dilatórias e tácticas processuais) contra a participação pública (SLAPP – Strategic Lawsuit Against Public Participation), instauradas para intimidação, na intenção de assediar, censurar e pressionar quem assume uma posição pública de crítica ou de oposição.

Antigo chefe da redação do portal NEXTA, Raman Pratasevich foi detido em Maio de 2021, após o avião comercial da companhia irlandesa Ryanair, em que viajava da Grécia para a Lituânia, ter sido desviado para Minsk por um avião da força aérea bielorrussa. (Créditos fotográficos: AP Photo/Sergei Grits, Arquivo – pt.euronews.com)

Preocupada com a possibilidade de existir uma utilização abusiva e desproporcionada das vantagens económicas ou das influências políticas dos demandantes das SLAPP, a UE avança com a Directiva (UE) 2024/1069 do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa, de 11 de Abril. Assim, a partir de hoje (6 de Maio), Portugal tem dois anos para a respectiva transposição, deixando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios de proteger as pessoas envolvidas na participação pública, contra os pedidos manifestamente infundados e contra as SLAPP, enquanto processos judiciais abusivos.

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 5 de Maio) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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06/05/2024

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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