“Direito ao Cuidado, Cuidado com Direitos”

 “Direito ao Cuidado, Cuidado com Direitos”

Manifestação pelos cuidadores informais. (Créditos fotográficos: Leonardo Negrão / Global Imagens – tsf.pt)

Há pouco mais de um ano, começou a ser pensada e organizada a Iniciativa Legislativa Cidadã (ILC) “Direito ao Cuidado, Cuidado com Direitos”, uma proposta de lei que reivindica três pilares essenciais:

  • Assegurar os direitos laborais plenos aos e às profissionais dos cuidados a quem a lei continua a impor a precariedade;
  • alargar a licença de parentalidade e criar uma licença de cuidados; e
  • criar um Serviço Nacional de Cuidados, de modo a instituir os cuidados como um direito social universal e uma responsabilidade coletiva.
(Créditos fotográficos: Centre for Ageing Better – Unsplash)

O trabalho dos cuidados garante a nossa existência e a sua manutenção. Entretanto, normalmente, este é invisibilizado e não assegurado como um direito, ao contrário da Saúde ou da Educação, por exemplo.

As famílias mantêm e assumem a garantia dos cuidados aos seus familiares, sendo da sua responsabilidade 80% da prestação dos cuidados continuados. As pessoas cuidadoras informais, que o vínculo laboral já se escancara pelo próprio nome, somam quase um milhão de pessoas, em Portugal. O Estatuto de Cuidador Informal, apesar de avanços e de ainda estar em atualização, continua longe de garantir os direitos reivindicados e o reconhecimento social efetivo solicitado pela categoria.

Sabe-se que a sobrecarga do trabalho dos cuidados e das tarefas domésticas, para aqueles que não têm como arcar com auxílio externo, recai, sobretudo, nas mulheres. O tempo e a dedicação ao trabalho dos cuidados e ao trabalho doméstico é exercido, maioritariamente, por mulheres. A consequência dessa sobrecarga são jornadas duplas, até triplas, de trabalho por uma demanda de manutenção da vida de todos nós que não foi, e não é acompanhada por respostas públicas universais que assegurem, de fato, os cuidados de crianças, de idosos ou de pessoas dependentes como um direito. A organização dos cuidados é marcada pelo défice de oferta e pela precariedade e desvalorização salarial das (e dos) profissionais de cuidados e do serviço doméstico (em ambos, cerca de 90% são mulheres).

(Créditos fotográficos: Centre for Ageing Better – Unsplash)

Em Portugal, a crise dos cuidados, em grande parte pelo decréscimo populacional e pelo aumento do envelhecimento, necessita de uma resposta. Assentar uma resposta no setor informal não parece uma solução viável a longo prazo. Uma vez que recai numa excessiva carga familiar e na manutenção de uma reduzida oferta de serviços formais, a qual é considerada como apresentando uma das taxas de cobertura mais baixas da Europa.

O acesso a serviços de cuidados depende das IPSS (instituições particulares de solidariedade social), tendo o Estado e as famílias como cofinanciadoras de um serviço que não abrange toda a demanda existente. No caso das pessoas idosas, por exemplo, a cobertura de cuidados formais (em lares, em centros de dia e a nível do apoio domiciliário) só chega a 13%. Em outras áreas, como a das creches ou as  relacionadas com as respostas para pessoas com deficiência, falta investimento e oferta. Ou seja, sem cobertura de serviços públicos, nem um verdadeiro direito com plena cobertura.

Em contrapartida, ao que vimos relativamente aos vínculos laborais formais e informais e à sua cobertura, a área dos cuidados é a das que mais tem criado emprego. Contudo, assenta num modelo de exploração do trabalho precário e migrante, o qual acentua e agudiza as desigualdades sociais. Somado a isso, as leis laborais  em Portugal não reconhecem o direito a cuidar. Os horários, os regimes de trabalho e as licenças não estão adequados às necessidades da população. O que implica que muitas pessoas, maioritariamente mulheres, tenham de realizar uma dupla jornada de trabalho ou, ainda, abdicar de um trabalho com rendimentos e ficar em casa para cuidar de crianças ou de idosos.

(Créditos fotográficos: Manuel Alvarez – Pixabay)

Um regime de cuidados dependente exclusivamente da família biológica gera várias exclusões, sobretudo, por haver famílias com diversas configurações para além do padrão culturalmente enraizado na nossa sociedade, podendo corroborar ou confirmar uma amplificação das desigualdades e/ou exclusões sociais e a não garantia de direitos, por parte de determinadas parcelas da população.

A proposta de criação do Serviço Nacional de Cuidados é composta pela sugestão de um conjunto organizado e articulado de estabelecimentos e de serviços de acesso gratuito e universal, em todo o território nacional. Promovido através de uma rede pública de lares/centros de dia com cuidados individualizados, de serviços de apoio domiciliário, de creches públicas, de uma bolsa pública de assistentes pessoais e da integração de outras respostas, nomeadamente de residências partilhadas e da garantia de uma vida independente.

(Direitos reservados)

São, hoje, 12 as entidades e organizações promotoras e apoiantes, abertas para outras que ainda queiram somar-se. Atualmente, a ILC está na fase de recolha das 20 mil assinaturas necessárias para que esta proposta possa ser entregue à Assembleia da República. A subscrição da ILC pode ser realizada online, em direitoaocuidado.org. Há também subscrição em papel, que está a ser feita em vários pontos do país. Pode obter mais informações no site, nas redes sociais @direitoaocuidado, ou por e-mail direito.ao.cuidado@gmail.com.

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Nota da Autora:

A nova rubrica de opinião «Travessias» pretende levar-nos a caminhos reflexivos e, em espiral, a pensarmos sobre as lutas, as frutas, as pontes, e cornetas… (parafraseando A garota não e Luca Argel, na canção “Países que ninguém invade”).

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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19/06/2023

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Tainara Machado

Tainara Fernandes Machado nasceu em Porto Alegre, no Sul do Brasil e, desde fevereiro de 2019, vive em Portugal. Socióloga e educadora é, igualmente, ativista feminista e assumida anticapitalista e pelo combate à precariedade laboral e da vida. Colabora na associação A Coletiva (Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis) e no Coletivo Andorinha, e também como investigadora colaboradora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. As suas reflexões expressam os seus estudos, a ação ativista, a sua vida de (i)migrante e as travessias entre o Brasil e Portugal.

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