Direitos Humanos, de longe p’ra muito longe?

 Direitos Humanos, de longe p’ra muito longe?

Zeyn Afuang (Unsplash)

Para um médico, abordar a Medicina é retratar uma vida. Quando eu era novo, (jovem médico) queria ser velho; e agora, que sou velho (aposentado), queria ser novo (para mudar o mundo?…). A vida é água a correr. E quanta água corre debaixo das pontes! E não serei eu que terei a pretensão de ser exemplar, como médico de família, docente universitário (que ensinou 10 mil estudantes que são actuais médicos) e voluntário na vida associativa, sindical e de voluntariado internacional.

Abordar Direitos Humanos é expressar uma vida paralela. Sobretudo, para mim, que fiz 43 missões de serviço, de reconhecimento, de avaliação e de intervenção, principalmente em África, na Ásia e na América Latina, em ajuda ao desenvolvimento; e que organizei dezenas de missões no âmbito das grandes catástrofes da Humanidade, desde a guerra na Guiné-Bissau aos pós-massacres em Timor, bem como nas cheias de Moçambique, no tsunami do Sudeste Asiático, no terramoto em Haiti, nos campos de refugiados na Etiópia e no Quénia, e por aí fora, em ajuda humanitária.

No Dia Internacional dos Direitos Humanos, a 10 de Dezembro, celebrou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos – 73 anos depois, veja-se!… –, aprovada pelas Nações Unidas, e que diz no seu primeiro ponto: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

Hernâni Caniço (peça que é oferta de Sergiu Stefanov)

Dissequemos esta afirmação, que não pode (ou não deve) ser apenas teoria, em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, em função da naturalidade, para os autóctones, os migrantes, os refugiados, os seres humanos, enfim…

Ser livre é não só dizer o que se pensa e ter o direito de decidir, mas também ter as condições, sociais, económicas e de afectos (a família e os amigos), sentir-se bem e ser útil aos outros, à comunidade.

Não se é livre, por exemplo, quando se nasce na miséria humana (até em caixotes do lixo), sem condições mínimas de assistência médica e de sustento para a sobrevivência; quando não é garantida a alimentação saudável, que faz crescer e evita doenças; quando existem ditaduras que não permitem a livre expressão do pensamento com autonomia e com responsabilidade; quando há vítimas de exploração laboral ou sexual e tráfico de seres humanos; quando há violência doméstica e familiar, que é crime e deve ser denunciado; quando há vítimas de bullying que sofrem, por vezes, em silêncio e sem ter os apoios que merecem, o que também é crime e deve ser denunciado; quando não se respeita o direito à diferença, em que cada um tem o direito de não pensar e, como nós, de ser respeitado.

Ben Richardson (Unsplash)

Ser igual é ter as mesmas oportunidades, de acordo com o empenho, o esforço e a dedicação de cada um, sem prejudicar os outros, seguindo o caminho do sucesso, dos sentimentos e do progresso da sociedade.

Não há igualdade quando uns têm privilégios e outros só têm obrigações; quando uns respeitam as pessoas e a sua vontade legítima e outros agridem verbal ou fisicamente, apenas porque não têm a mesma opinião; quando, para uns terem lucros através da fraude, vai haver prejuízos para as outras pessoas que vêem retirados os seus direitos; quando há guerras e conflitos armados por interesses económicos e políticos que afastam as pessoas, entre si, tornando-as violentas; quando os jovens estão preocupados com o futuro e são mandados emigrar; ou quando estão agindo pela carreira, a qualquer custo.

Não há igualdade quando uns têm privilégios e outros só têm obrigações; quando uns respeitam as pessoas e a sua vontade legítima e outros agridem verbal ou fisicamente, apenas porque não têm a mesma opinião

Valentin Salja (Unsplash)

Ter dignidade é ser honrado. Quer dizer, ter princípios e valores. É ter respeito pelas pessoas e pela sociedade. É ter orgulho nas capacidades de cada um. E é ser humilde, nas limitações que qualquer pessoa tem.

Não há dignidade, quando há arrogância, com a “mania” de se achar o melhor, o “maior”, apenas porque sim; quando se vive em condições precárias, sub-humanas, sem acesso a água potável, a electricidade, a habitação adequada ao clima, aos livros de estudo, ao material de trabalho, ao repouso compensador ou à reforma pela idade e cansaço; quando, para sobreviver, como os refugiados, as pessoas têm de fugir à guerra e à falta de expectativas de melhoria de vida, correndo riscos de morte para si e para a sua família, sendo até escorraçadas em países de transição e de destino, porque não as querem acolher.

Gregory Fullard (Unsplash)

Direitos não são apenas a saúde, a educação, a segurança social, a habitação, etc. (direitos tradicionais). É também ter qualidade de vida pessoal. É contribuir para a família e para a sociedade. É ter amigos para abraçar e ser abraçado. É ter paixão pelo que se gosta (o estudo, o trabalho, as pessoas, o amor).

Direito é diferente de caridade. O direito é um princípio, a caridade é um sentimento. Ambos são úteis, mas diferentes. Eu sou a favor dos direitos humanos, mas respeito quem pratica a caridade. Não ter direitos é uma tristeza. E deve ser uma luta que todos devemos travar para todos, como ética e princípio de vida, não apenas como moral.

Spenser Young (Unsplash)

“Os seres humanos são dotados de razão e consciência e agem em fraternidade…”, diz a Declaração. A razão é o que nos permite tomar decisões e resolver problemas, de acordo com a nossa consciência. E a nossa consciência leva-nos a agir em fraternidade. Ou seja, sermos como irmãos que podem ter divergências, pensar de forma diferente e divergir ocasionalmente, mas também tendo traços comuns ligados à amizade ou à família que nos une.

E a Medicina? A Medicina tem disciplinas baseadas na relação médico-doente e na acção humanitária não lucrativa (eu não tive, mas leccionei ambas e não fui valorizado – para ser suave), tem o Juramento de Hipócrates (eu não tive, não havia), tem a Queima das Fitas (eu não tive, não havia), tem burnout (eu também tive, mas resisti até 72 horas consecutivas de laboração), tem condições de trabalho pouco dignas (eu também tive, vim embora), tem a COVID e tem as doenças ocultas, que o são porque ficaram para trás.

E Portugal? Portugal doou 4,4 milhões de doses de vacinas contra a COVID e tenciona oferecer, no total, cerca de seis milhões a países mais carenciados. Mas, até 30 de Novembro último, apenas tinham chegado aos países de destino metade das doses já disponibilizadas (cito o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Infarmed). No âmbito da iniciativa Covax, apenas chegaram cerca de 300 mil doses dessa vacina ao Senegal…

Moçambique (Créditos: Hernâni Caniço)

E o Mundo cruel?  As baixas taxas de vacinação anti-COVID nos países pobres são elucidativas. Só 7,5% das pessoas que vivem em África, têm duas doses. É preciso comentar? Na passada semana, em visita a Coimbra, Xanana Gusmão, ex-Presidente da República e primeiro-ministro de Timor-Leste (o qual tive a oportunidade de conhecer em Díli) referia que há uma desigualdade chocante na distribuição de vacinas, o que o levou a crer que um “mundo solidário, justo e desenvolvido não passa de uma ilusão”.

No caso dos refugiados, compete aos países europeus rever o sistema de concessão de asilo e a responsabilidade de aumentar as rotas seguras e legais para que alcancem em segurança o espaço europeu. É o que faz a Polónia e a Bielorrússia ou o que fez a Hungria?

Nicolas Ladino Silva (Unsplash)

Vamos no caminho do Desenvolvimento Sustentável 2030 para todos? Incluindo a Saúde para Todos (que era para ser atingida no ano 2000) reavivada em 2012? Dizia António Arnaut, num colóquio da Ordem dos Médicos (OM), em 8 de Junho de 2016: “Nos EUA ou na Grécia – “democracias reconhecidas”, considerou –, os cidadãos só garantem a prestação de cuidados através de seguros de saúde”. E Carlos Cortes (presidente do Conselho Regional do Centro da OM) referia, e muito bem, na mesma ocasião, que “mais do que o direito à saúde, as pessoas têm direito aos melhores cuidados de saúde”; e que a saúde “não pode ser vista como uma conquista social, mas como um direito fundamental”.

Exposta a realidade, não embarcamos no discurso do ódio que vemos por aí. O ódio é egoísmo, é intolerância – quem não é por mim é contra mim – e tem o desejo de evitar, limitar ou destruir o objectivo de uma pessoa, de uma raça, de uma etnia, de uma orientação sexual, de quem é pobre e não consegue o que outros têm.

Valeria Diaz Gallegos (Unsplash)

O poema “Lágrima de preta”, de António Gedeão, começa assim: “Encontrei uma preta / que estava a chorar, / pedi-lhe uma lágrima / para a analisar”. E termina: “[…] nem sinais de negro, / nem vestígios de ódio. / Água (quase tudo) / e cloreto de sódio.” Somos contra o ódio e reconhecemos o direito à diferença, bem como o direito a ser feliz. O direito a cada um de vós ser feliz, tal como é, sem desrespeitar os outros.

E o futuro, em direitos humanos, vai de longe p´ra muito longe? A felicidade é tal como aferem os indicadores do reino do Butão? Ou como a que se expressa com os direitos humanos, para a qual contribuem os médicos, mas que os ultrapassa? É o futuro em que ainda acreditamos, se a Humanidade – através dos seus líderes, dos stakeholders e do exercício de cidadania – for capaz e quiser eliminar as distorções que ferem os sentimentos, a solidariedade e o humanismo.

17/12/2021

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Hernâni Caniço

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