Discurso sobre um edifício admirável

 Discurso sobre um edifício admirável

“Discurso sobre o filho-da-puta”, de Alberto Pimenta. (© Teatro da Rainha – Foto de Paulo Nuno Silva)

Bom, eu estou num lugar que foi o meu e que é o meu lugar. Eu estou, tenho um olho que chora e outro olho que ri, depois desta admirável criação, porque isto é uma criação e admirável. E, para mim, foi também uma recriação, uma recriação inesperada. Foi uma espécie de edifício, de um grande edifício colocado em cima daquele texto que eu escrevi há quarenta anos, um pouquinho mais e que tantos incómodos me deu e que nunca me levaria a supor que eu pudesse ter.

Não é o prazer, que me pudesse caber esta felicidade, que é uma palavra que eu uso pouco, porque poucas vezes na vida a senti. Esta felicidade de ver que este texto permite criar em cima dele e deixando-o no ponto do pensamento. O tal edifício maravilhoso que vocês criaram, que está aqui criado, porque os incómodos que eu tive com o texto, as desilusões sobretudo, levaram a que o texto fosse esmorecendo no meu espírito. E está morto. Estava morto até este momento, estava realmente morto, esquecido. Era a única maneira de eu me libertar de tudo o que aconteceu.

Primeiro, para o muito que vocês deram, as palavras devem ser poucas. E o que deve ficar é o que vocês fizeram e não o que eu digo, mas o que eu digo é tão importante para mim… Eu, primeiro, fiquei surpreendido quando, numa época, naquela época em que os textos, os ínfimos textos de plaquete, eram anunciados e comentados nos jornais, muitos. Que não houvesse uma palavra sobre este discurso e que, quando ele fosse referido, intercalado com outros textos que diziam respeito à minha escrita, ele o fosse sempre com reticências; ou agora que nem reticências tem tido.

Depois, mais importante do que isso, porque isso é institucional, agora posso dizer, em quarenta anos de conversas com colegas (colegas das Letras, com conhecidos, com gente interessada em livros), foi muitas vezes mencionado por essas pessoas, pelas que falaram comigo, o título, por inteiro ou com reticências. Foi muitas vezes mencionado, mas nem uma única vez – aqui, Alberto Pimenta, acentua um tom de espanto indignado – se falou que a expressão “filho da puta” era utilizado setecentas e trinta e tantas vezes, o que num texto pragmático era insuportável. Portanto, não era um texto pragmático.

(© Teatro da Rainha – Foto de Paulo Nuno Silva)

Seria um texto poético, talvez na fronteira – na fronteira, isso daria uma grande discussão sobre poeticidade –, mas um texto com uma obcecação daquelas. O Miguel Azguime disse-me: “O texto serviu-me de partitura.” Um texto com aquela definição é um texto com uma cadência de tipo musical. Aquilo é um “ostinato”. O termo é um motivo ou frase musical e não pode ser outro, nunca ninguém se referiu a isso. Nunca ninguém perguntou, por exemplo, porquê uma repetição destas. Quanto ao tema, quanto à sequência que vai do geral passando pela vida até à morte, e nesta encenação, o começo foi uma ideia maravilhosa. É depois da vida que a vida começa. E isto poderia intitular-se.

Há imensos estudos, actuais, sobre o comportamento dos animais superiores. Cada animal tem um comportamento diferente; o da zebra e o do porco são diferentes do da girafa. E isto poderia ser o sistema de comportamento do animal, da espécie animal chamada Homo sapiens, porque não só a meio do discurso se dá uma transição entre aquele que cabe dentro da definição de “filho da puta” e os outros, que começam, de certo modo, a misturar-se.

(© Teatro da Rainha – Foto de Paulo Nuno Silva)

É uma categoria do pensamento e do comportamento do ser humano e, sobretudo, faz parte do comportamento do ser humano. É o único animal superior que tem um conceito de vida depois da vida e que tem o princípio clerical de que a vida tem de ser um vale de lágrimas. E, mais do que isso, os sacrifícios feitos agora podem ser compensados depois, pela divindade. Tudo isso foi transmitido de uma maneira tão admirável. Estou muito grato, muito, muito grato, porque, a partir de hoje, o texto pode renascer no meu espírito. Muito obrigado.

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Nota da Redacção:

Como observa Fernando Mora Ramos, este texto é a transcrição, na íntegra, do que Alberto Pimenta disse, de improviso, na estreia do “Discurso sobre o filho-da-puta”, em Lisboa, no O’culto da Ajuda, que é um espaço alternativo e sede da Miso Music Portugal, de Miguel Azguime, “projecto com décadas e centrado na música contemporânea portuguesa, em todas as suas vertentes, da criação à divulgação”. “É um projecto único no País!”, reforça Mora Ramos.

O artigo agora publicado resulta de um “texto” oral de Alberto Pimenta, em reacção ao seu “Discurso sobre o filho-da-puta”. O espectáculo foi apresentado nos dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 2020, no espaço do O’culto da Ajuda.

A propósito desta alocução de Alberto Pimenta sobre o seu texto, refira-se que o “Discurso sobre o filho-da-puta”, posto em cena pelo Teatro da Rainha, com encenação de Fernando Mora Ramos e música de Miguel Azguime, vai poder ser assistido no Teatro-Estúdio da Bonifrates, na Casa Municipal de Cultura de Coimbra, entre 6 e 9 do corrente mês de Abril (às 21h45).

31/03/2022

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Fernando Mora Ramos

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