Disparates
A qualquer um de nós, às vezes, apetece dizer disparates1. É uma atitude lúdica desregradora e anárquica, pois estabelece um nonsense ou algo sem sentido, num discurso ou atitude na quotidianidade. Quando crianças brincávamos fazendo ou dizendo disparates, mas é suposto que, já mais adultos, estas atitudes vão desaparecendo, para serem menos frequentes…
Porém, ultimamente, só tenho visto, lido e ouvido disparates. Passo a exemplificar.
“Beijos roubados” é um belo título de um belo filme francês, de 1968. “Baisers volés”, é um filme do género de comédia dramático-romântica, realizado por François Truffaut, que também foi coautor do argumento, com Claude de Givray e Bernard Revon.
Foi o terceiro dos filmes em que o actor Jean-Pierre Léaud interpreta a personagem de Antoine Doinel, o alter-ego do realizador.
Este filme não tem, como é óbvio, nada que ver com aquilo que aconteceu recentemente com as campeãs espanholas, quando o então presidente da Federação de Futebol de Espanha beijou a jogadora Jennifer Hermoso. Quem está em cargos públicos deve ter decoro, postura e dignidade de Estado. Palpar os genitais grosseiramente, em plena bancada, é tanto ou mais ofensivo quanto o beijo roubado e imposto, sobretudo quando as que estão no campo são jovens jogadoras.
Mas nada, nada poderá ofuscar o êxito total e absoluto das futebolistas espanholas, em três escalões ao mesmo tempo: venceram o Campeonato do Mundo Feminino Sub-17, o Mundial de Sub-20 e a nível da Selecção Principal.
Elas demostraram que podem ser as melhores e desterraram, para sempre, aquela ideia anquilosada de que uma menina não pode jogar à bola, paralelamente à ideia de que os meninos não podiam brincar com bonecas.
Camilo Castelo Branco e o nu da estátua “Amor de Perdição”, situada no Largo Amor de Perdição (Campo Mártires da Pátria – Jardim da Cordoaria), têm estado na origem de uma polémica que é um disparate total. Não sei se a ideia veio peregrinamente depois do referido incidente espanhol do polémico beijo de Luis Rubiales a Jenni Hermoso.
É um outro disparate, por respeito a Camilo, “grande operário” da literatura portuguesa, na acepção do escritor António Manuel Pires Cabral. E também por respeito ao amor de Ana Plácido. Deixem estes dois seres magníficos beijarem-se eternamente, nus ou seminus, vestidos ou menos vestidos. Eles representam o amor eterno que, às vezes, pode ser de perdição!
Marcelo Rebelo de Sousa e o decote… Mais um disparate! Se Marcelo fosse mais discreto e menos comentador nas suas abordagens, nada disto teria acontecido.
Aníbal Cavaco Silva, com o seu recente livro “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar”2, dá azo a outro disparate total. De quando em quando, o “ex-ex” (já que foi duas vezes primeiro-ministro e duas vezes Presidente da República) sente a necessidade de escrever e de dar conselhos. Há alguém que o escuta e venera nos lançamentos dos livros, mas não sei se terão “lata” (atrevimento ou descaramento) para o lerem… O actual primeiro-ministro, António Costa, terá ficado doente e faltou a uma conferência na televisão.
Na entrevista a Cavaco Silva do semanário SOL, fala-se de remodelações governamentais. Por isso, agradeço que escutem a interpretação de Agostinho Costa Sousa, a partir do relato “Remodelações Governamentais”, da autoria de Mário Henrique Leiria. Certamente, uma obra-prima!
Por sua vez, “Miguel Sousa Tavares seguiu o conselho de Durão Barroso e foi ler antes de comentar o livro de Cavaco Silva”. Deu-lhe “zero estrelinhas”. Gostei de ouvir esta gravação – hoje, chamam-lhe podcast (“Miguel Sousa Tavares de Viva Voz”) – a que se pode aceder, em permanência, no expresso.pt.
Lamento o disparate do “Postal do Dia”, programa de 8 de Setembro de 2023, intitulado “O pequenino Cavaco e o gigante Edgar”. Luís Osório escreve todos os dias um belo postal, que ouço na TSF. Contudo, foi aqui mal comparado (pois, é disparate!) Edgar Morin com Cavaco Silva: não há vidas paralelas possíveis entre estes dois senhores… Céu e terra, nada que ver!
Aníbal Cavaco Silva continuará a escrever livros apequenando-se sucessivamente, até se transformar numa pequena figura da segunda ou da terceira fila de um presépio. Edgar Morin tem, actualmente, 102 anos e falou em Lisboa, com lucidez e sabedoria, sobre o estado do Mundo.
A bofetada do maestro inglês John Eliot Gardiner a um músico revela como pode ser humano e tão tirânico um director de orquestra que admiro, desde há muito!
O político Miguel Albuquerque afirmava: “Se não alcançar a maioria absoluta e não conseguir formar governo, demito-me.” Ouvimos todos durante a campanha. Mas, depois da noite de 24 de Setembro, dia das eleições regionais na Madeira, já não havia demissão. O presidente do Partido Social Democrata, Luís Montenegro, viajou até a Madeira para lucrar um bocadinho com os votos de Miguel Albuquerque e, por fim, com um pouco de coragem, que lhe tem faltado (há mais de 15 meses!), declarou que não haverá aliança futura com o partido Chega… (Chega-te para lá!) Todavia, qualquer partidozinho com um deputado basta para continuar ao som do bailinho da Madeira! Recorde-se que alguma imprensa utilizou o termo “geriponcha”. Genial!
Outro disparate é não se poder chamar “gordo” aos gordos. Há uma anedota de um menino que, sendo vítima do bullying, se define como “forte”… Julgo que a conhecem. A propósito, em 15 de Setembro, morreu o pintor dos gordos – colombiano, “irmão” de Gabriel García Márquez – Fernando Botero (1932-2023), que fez dos gordos os mais belos retratos, recriando pinturas e pintores clássicos; e povoando o seu universo de militares, de músicos, de prostitutas e de senhores gordos e outras figuras rotundas, todos metidos numa mesma cama ou tela. Conta-se que a inspiração para todo este universo partiu de um bandolim de corpo e ventre arredondado que se manifesta musicalmente através de uma pequena boca circular, abertura feita na caixa acústica, designada “roseta”.
Um bom disparate com uma turista que pede uma lagosta de 200 euros num restaurante sofisticado, como informa a SIC Notícias (em 19.09.2023): “Uma turista suíça pediu o crustáceo num restaurante da região italiana da Sardenha, mas em vez de salivar com a refeição que se aproximava, decidiu libertar o animal nas águas junto ao estabelecimento.”
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Notas:
1 – A RAE (Real Academia Espanhola) define “disparate” como um substantivo masculino, expressão destituída de razão e de senso; algo despropositado e fora da realidade. Acto impensado; imbecilidade ou parvoíce, asneira. Também ex-abrupto!
Já confessei, neste espaço, num artigo anterior, a minha admiração e gosto pelo pintor e gravador espanhol Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). Por isso, aproveitei a oportunidade para ilustrar estes meus disparates com uma das suas gravuras.
Los disparates ou Los provérbios é uma série (provavelmente, incompleta) de vinte e duas gravuras efectuadas com água-tinta e água-forte, com retoques de ponta seca e brunidor, desenvolvida por Francisco Goya, entre 1815 e 1823. Regista a Wikipédia: “[…] Dentre todas as estampas realizadas por Goya, esta série é a de mais difícil interpretação. Nela destacam-se as visões oníricas, a presença da violência e o sexo e a ridiculização das instituições relacionadas com o Antigo Regime e[,] em geral, a crítica do poder estabelecido. Porém, além destas conotações, as estampas oferecem um mundo imaginativo rico relacionado com a noite, com o [C]arnaval e com o grotesco, que constituem um enigma tanto [de] estampa por estampa quanto no seu conjunto. […]”
2 – “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar” faz-nos recordar o livro “A Arte de Bem Governar”, igualmente polémico, escrito por Margaret Thatcher em que a antiga primeira-ministra do Reino Unido – segundo a sinopse apresentada pela Quetzal Editores e justificando o subtítulo “Estratégias para um mundo em mudança” – “reflecte acerca dos desafios militares, políticos e económicos do século XXI, utilizando a sua notória experiência política para comentar as ameaças que pairam sobre a democracia no despontar do novo milénio e o papel das potências ocidentais nas zonas em conflito do planeta, especialmente após o 11 de Setembro de 2001”.
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Nota do Director:
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12/10/2023