Dissolução parlamentar: prerrogativa, capricho ou necessidade?

 Dissolução parlamentar: prerrogativa, capricho ou necessidade?

Assembleia da Repúblia. Cerimónia comemorativa do 25 de Abril de 1974.(www.parlamento.pt)

No seu discurso na sessão comemorativa do 112.º aniversário da implantação da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao fazer o paralelismo da situação atual com a de 1922, enfatizou os instrumentos de controlo que não havia então e de que a democracia hoje dispõe. De entre estes, relevou os poderes presidenciais, explicitando o veto e, no limite, a dissolução parlamentar.  

A referência à dissolução caiu mal em algumas mentes, não pelo teor do discurso em si, mas por declarações em momentos anteriores, em que terá deixado antever a hipótese de, em resultado de avaliação que viesse a fazer em 2024, poder usar desta prerrogativa presidencial, aliás como o dissera quando surgiu a hipótese de António Costa ocupar, a partir desse ano, um cargo na União Europeia (UE). E ainda nos lembramos de que, mal surgiram as probabilidades de o Orçamento do Estado para 2022 não ser aprovado no Parlamento, apontara para a dissolução parlamentar.

Parlamento (Créditos fotográficos: Pedro Teixeira Lopes / AR)

Tudo isto será motivo para reflexão em torno desta figura constitucional.

O Glossário da Assembleia da República (AR), explicita o verbete “Dissolução da Assembleia da República”: “Ato da competência do Presidente da República que decreta a extinção da legislatura em curso, antes do termo da sua duração normal. No caso de dissolução, a Assembleia então eleita inicia nova legislatura, cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da eleição.”

Seguindo a Constituição da República Portuguesa (CRP), a dissolução da AR consiste num ato político livre do Presidente da República (PR) que determina a cessação de funções desse órgão parlamentar antes de o mesmo completar a legislatura.

O PR, no contexto do sistema político de governo semipresidencialista consagrado pela CRP, tem a faculdade de emitir um decreto de dissolução da AR, ao abrigo da alínea e) do artigo 133.º da CRP. A dissolução não acarreta necessariamente a demissão do Governo, mas implica a marcação de novas eleições parlamentares. É, pois, o único instrumento de interrupção de uma legislatura.

Tratando-se de um ato livre, o mesmo não deixa de estar sujeito a um conjunto de requisitos processuais, temporais e circunstanciais, o que afasta a ideia de capricho ou arbitrariedade presidencial. Com efeito, previamente ao ato de dissolução, o PR deve ouvir o Conselho de Estado e os partidos representados na AR, como estabelece a alínea e) do artigo 133.º da CRP, não se encontrando juridicamente vinculado ao sentido maioritário das referidas audições.

Todavia, nos termos do n.º 1 do artigo 172.º da CRP, o PR não pode dissolver a AR: i) Nos seis meses posteriores à sua eleição e no último semestre do mandato presidencial; ii) Durante a vigência do estado de sítio e do estado de emergência.

Um ato de dissolução que não observe os requisitos temporais e circunstanciais do n.º 1 do artigo 172.º da CRP será juridicamente inexistente, ou seja, não produzirá qualquer efeito jurídico, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, não podendo ser observado por nenhuma outra instituição da República.

Tratando-se de um ato livre, o mesmo não deixa de estar sujeito a um conjunto de requisitos processuais, temporais e circunstanciais, o que afasta a ideia de capricho ou arbitrariedade presidencial

Sem prejuízo da sua índole de ato livre, a prática constitucional demonstra que a dissolução ocorre, usualmente, no contexto de uma crise política que envolve o Governo.

Não é poder de tipo governamental, próprio dos regimes parlamentares, pois não é determinado pelo Governo, embora este a possa sugerir ao PR. Não é poder típico de regime presidencialista, pois, aí a separação dos poderes inibe o PR de dissolver o Parlamento. É uma figura próxima da dissolução real das monarquias dualistas, transferida para os regimes republicanos de estrutura parlamentar-presidencial (sistema semipresidencialista). É um poder próprio do PR, não um poder partilhado, pois não depende de proposta e, embora necessite de audição prévia, não fica a ela vinculado, cabendo apenas ao PR apreciar a legitimidade e o mérito.  

Também a CRP não impõe pressupostos objetivos que levem à dissolução, ou seja, nada obriga o PR a decretá-la. Ao invés, há circunstâncias em que ela é proibida. Assim, pode haver uma tentação de arbitrariedade, a não ser que se verifiquem as ditas circunstâncias proibitivas.

(Créditos de imagem: ARTV – Canal Parlamento)

Porém, a dissolução pressupõe situação de conflito permanente entre Governo e AR, falta de suporte permanente do Governo por parte da AR, séria presunção de falta de correspondência entre a composição da AR e a opinião pública e necessidade de afastar de cena o Governo por parte do PR, já que este tem muita dificuldade em demitir o Governo, a menos que esteja em causa o regular funcionamento das instituições democráticas (CRP, artigo 195.º, n.º 2), situação difícil de apurar. Contudo, o PR interino não pode usar desta faculdade (CRP, artigo 139.º).   

A proibição da dissolução da AR nos seis meses subsequentes à sua eleição pretende evitar a banalização desta prerrogativa presidencial e pressupõe que, em tão pouco tempo, não se altera significativamente a vontade do eleitorado. Já a proibição da dissolução nos seis meses anteriores ao termo do mandato do PR obsta que este aproveite a dissolução para prolongamento do seu mandato e evita que um PR recandidato tente jogar nas eleições parlamentares para obter uma maioria parlamentar favorável. E a proibição da dissolução em estado de sítio ou em estado de emergência visa impedir a concentração de poderes durante esse período e garantir a fiscalização desse estado de exceção.

A dissolução pressupõe situação de conflito permanente entre Governo e Assembleia da República (AR), falta de suporte permanente do Governo por parte da AR, séria presunção de falta de correspondência entre a composição da AR e a opinião pública e necessidade de afastar de cena o Governo por parte do Presidente da República

A sanção para a dissolução contra os limites estabelecidos na CRP é a inexistência jurídica do decreto, pelo que a AR não o deve acatar e, porque pode configurar crime de responsabilidade (CRP, artigo 117.º, n.º 3), cabe-lhe desencadear a respetivo processo criminal contra o PR.

A dissolução interrompe a legislatura, mas não de imediato, pois esta vai até ao início de funções da nova AR. Não implica a total cessação de funções da AR dissolvida, pois mantém-se o estatuto dos deputados e a vigência da Comissão Permanente. E o plenário pode funcionar nos casos em que a AR tenha necessariamente de intervir, como para autorizar a declaração do estado de emergência ou a do estado de sítio e discutir o programa de governo, se algum for, entretanto, constituído. Porém, faz cessar a discussão de assuntos pendentes e caducar as autorizações legislativas ao Governo (CRP, artigo 165.º, n.º 4).

***

Quando o PR colocou a hipótese de dissolução da AR pela eventual migração de António Costa para a UE, alguém questionava a possibilidade de o fazer mantendo-se na AR uma maioria parlamentar de suporte ao Governo. E o PR escudou-se no exemplo de Jorge Sampaio.

Comunicado ao País do ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, em 10 de dezembro de 2004, sobre as decisões de dissolver a Assembleia da República e de convocar eleições antecipadas. (© RTP)

Na verdade, em 2004, Jorge Sampaio decretou a dissolução da AR onde persistia uma maioria de suporte ao Governo liderado por Santana Lopes, o qual estava a quebrar-se por fratura interna e pela contestação dos barões partidários. Seria possível a maioria gerar nova solução governativa?    

Tal dissolução mereceu assentimento generalizado dos portugueses, mas foi objeto de crítica apoiada em pretensos fundamentos constitucionais, como: a dissolução não deveria ter ocorrido por as queixas se referirem ao Governo e não à AR; o Governo continuava a dispor do apoio da maioria parlamentar, pelo que a dissolução abria caminho à presidencialização do regime e induzia instabilidade. Ora, em sistema presidencial, o PR não tem o poder de dissolução. Este poder só existe nos sistemas parlamentares (onde é, de facto, um poder do primeiro-ministro) e em sistemas semipresidencialistas (onde é um poder do PR eleito por sufrágio universal). Por isso, o poder de dissolução livre nunca poderá conduzir à presidencialização do regime.

Em 2004, Jorge Sampaio decretou a dissolução da AR onde persistia uma maioria de suporte ao Governo liderado por Santana Lopes, o qual estava a quebrar-se por fratura interna e pela contestação dos barões partidários

Também não era inédita tal dissolução e não era verdade que o Presidente francês alguma vez se atrevera a tanto. Ora, na França, o primeiro ato do PR eleito é dissolver a Assembleia sempre que nela exista uma maioria contrária à maioria presidencial. E, entre nós, duas dissoluções tinham sido feitas contra a vontade da maioria parlamentar. Em 1983, o Presidente Eanes recusou o Governo que a maioria parlamentar lhe propunha e dissolveu a AR. Em 1987, o Presidente Soares foi mais longe: a maioria na AR demitiu o Governo e apresentou ao Presidente uma alternativa de governo. Porém, o PR deixou o Governo demitido em funções e dissolveu a AR. Só que eram maiorias constituídas ad hoc opostas ao partido que fora mais votado em eleições.

Depois da demissão de Pinto Balsemão do cargo de primeiro-ministro do VIII Governo Constitucional, o então Presidente da República, Ramalho Eanes, opta por dissolver o Parlamento, em 4 de fevereiro de 1983. (© RTP)

Não obstante, há sempre legitimidade constitucional para a dissolução da AR. Se a Constituição de semipresidencialismo impõe a eleição direta e universal do PR (e, entre nós, por maioria absoluta dos votantes e com mandato de duração superior e não coincidente com o dos deputados) é para lhe conferir legitimidade que o habilite a exercício de funções independente, não condicionado por qualquer pressão ou vontade da maioria parlamentar.

Ao dissolver a AR, o PR não sanciona malfeitorias cometidas pelo Governo ou pela Assembleia, o que seria incompatível com a legitimidade democrática, direta ou indireta, destes dois órgãos. O poder de dissolução significa, sim, a tentativa de resolução de crise ou bloqueio institucionais através da antecipação das eleições parlamentares. Formando a convicção, de modo inteiramente livre e responsável, de que a AR esgotou politicamente as possibilidades de gerar soluções governativas adequadas à superação de uma crise política, o PR remete a decisão para o Povo, chamando-o a eleger nova Assembleia, porque vê nisso uma necessidade.

É por se tratar de um poder de livre exercício, subordinado exclusivamente à interpretação que o PR faz do interesse público, que o poder de dissolução identifica, em última análise, a natureza específica do semipresidencialismo. A faculdade de apelar diretamente ao Povo, chamando-o a decidir, é um poder determinante nas mãos de um Presidente eleito por sufrágio universal. Com ele, o PR detém a chave de funcionamento do sistema político e só essa relevante posição explica a razão por que, três anos antes da eleição presidencial, se discutem candidaturas presidenciais.

Este poder não tem de ser exercido, mas a sua existência e configuração constitucional como poder de livre exercício do PR obriga qualquer maioria parlamentar, por mais absoluta que seja, a considerar a opinião do PR, a aceitar a sua magistratura de influência e a conformar-se com o exercício efetivo dos seus poderes. Importa que esta prerrogativa presidencial surja sempre da quase necessidade e não tenda a capricho ou a arma de arremesso, muito menos de bomba atómica, como é costume dizer-se. E nunca deve servir de ameaça ou ser anunciada a longo prazo.

17/10/2022

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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