Dissolução parlamentar: prerrogativa, capricho ou necessidade?
No seu discurso na sessão comemorativa do 112.º aniversário da implantação da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao fazer o paralelismo da situação atual com a de 1922, enfatizou os instrumentos de controlo que não havia então e de que a democracia hoje dispõe. De entre estes, relevou os poderes presidenciais, explicitando o veto e, no limite, a dissolução parlamentar.
A referência à dissolução caiu mal em algumas mentes, não pelo teor do discurso em si, mas por declarações em momentos anteriores, em que terá deixado antever a hipótese de, em resultado de avaliação que viesse a fazer em 2024, poder usar desta prerrogativa presidencial, aliás como o dissera quando surgiu a hipótese de António Costa ocupar, a partir desse ano, um cargo na União Europeia (UE). E ainda nos lembramos de que, mal surgiram as probabilidades de o Orçamento do Estado para 2022 não ser aprovado no Parlamento, apontara para a dissolução parlamentar.
Tudo isto será motivo para reflexão em torno desta figura constitucional.
O Glossário da Assembleia da República (AR), explicita o verbete “Dissolução da Assembleia da República”: “Ato da competência do Presidente da República que decreta a extinção da legislatura em curso, antes do termo da sua duração normal. No caso de dissolução, a Assembleia então eleita inicia nova legislatura, cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da eleição.”
Seguindo a Constituição da República Portuguesa (CRP), a dissolução da AR consiste num ato político livre do Presidente da República (PR) que determina a cessação de funções desse órgão parlamentar antes de o mesmo completar a legislatura.
O PR, no contexto do sistema político de governo semipresidencialista consagrado pela CRP, tem a faculdade de emitir um decreto de dissolução da AR, ao abrigo da alínea e) do artigo 133.º da CRP. A dissolução não acarreta necessariamente a demissão do Governo, mas implica a marcação de novas eleições parlamentares. É, pois, o único instrumento de interrupção de uma legislatura.
Tratando-se de um ato livre, o mesmo não deixa de estar sujeito a um conjunto de requisitos processuais, temporais e circunstanciais, o que afasta a ideia de capricho ou arbitrariedade presidencial. Com efeito, previamente ao ato de dissolução, o PR deve ouvir o Conselho de Estado e os partidos representados na AR, como estabelece a alínea e) do artigo 133.º da CRP, não se encontrando juridicamente vinculado ao sentido maioritário das referidas audições.
Todavia, nos termos do n.º 1 do artigo 172.º da CRP, o PR não pode dissolver a AR: i) Nos seis meses posteriores à sua eleição e no último semestre do mandato presidencial; ii) Durante a vigência do estado de sítio e do estado de emergência.
Um ato de dissolução que não observe os requisitos temporais e circunstanciais do n.º 1 do artigo 172.º da CRP será juridicamente inexistente, ou seja, não produzirá qualquer efeito jurídico, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, não podendo ser observado por nenhuma outra instituição da República.
Sem prejuízo da sua índole de ato livre, a prática constitucional demonstra que a dissolução ocorre, usualmente, no contexto de uma crise política que envolve o Governo.
Não é poder de tipo governamental, próprio dos regimes parlamentares, pois não é determinado pelo Governo, embora este a possa sugerir ao PR. Não é poder típico de regime presidencialista, pois, aí a separação dos poderes inibe o PR de dissolver o Parlamento. É uma figura próxima da dissolução real das monarquias dualistas, transferida para os regimes republicanos de estrutura parlamentar-presidencial (sistema semipresidencialista). É um poder próprio do PR, não um poder partilhado, pois não depende de proposta e, embora necessite de audição prévia, não fica a ela vinculado, cabendo apenas ao PR apreciar a legitimidade e o mérito.
Também a CRP não impõe pressupostos objetivos que levem à dissolução, ou seja, nada obriga o PR a decretá-la. Ao invés, há circunstâncias em que ela é proibida. Assim, pode haver uma tentação de arbitrariedade, a não ser que se verifiquem as ditas circunstâncias proibitivas.
Porém, a dissolução pressupõe situação de conflito permanente entre Governo e AR, falta de suporte permanente do Governo por parte da AR, séria presunção de falta de correspondência entre a composição da AR e a opinião pública e necessidade de afastar de cena o Governo por parte do PR, já que este tem muita dificuldade em demitir o Governo, a menos que esteja em causa o regular funcionamento das instituições democráticas (CRP, artigo 195.º, n.º 2), situação difícil de apurar. Contudo, o PR interino não pode usar desta faculdade (CRP, artigo 139.º).
A proibição da dissolução da AR nos seis meses subsequentes à sua eleição pretende evitar a banalização desta prerrogativa presidencial e pressupõe que, em tão pouco tempo, não se altera significativamente a vontade do eleitorado. Já a proibição da dissolução nos seis meses anteriores ao termo do mandato do PR obsta que este aproveite a dissolução para prolongamento do seu mandato e evita que um PR recandidato tente jogar nas eleições parlamentares para obter uma maioria parlamentar favorável. E a proibição da dissolução em estado de sítio ou em estado de emergência visa impedir a concentração de poderes durante esse período e garantir a fiscalização desse estado de exceção.
A sanção para a dissolução contra os limites estabelecidos na CRP é a inexistência jurídica do decreto, pelo que a AR não o deve acatar e, porque pode configurar crime de responsabilidade (CRP, artigo 117.º, n.º 3), cabe-lhe desencadear a respetivo processo criminal contra o PR.
A dissolução interrompe a legislatura, mas não de imediato, pois esta vai até ao início de funções da nova AR. Não implica a total cessação de funções da AR dissolvida, pois mantém-se o estatuto dos deputados e a vigência da Comissão Permanente. E o plenário pode funcionar nos casos em que a AR tenha necessariamente de intervir, como para autorizar a declaração do estado de emergência ou a do estado de sítio e discutir o programa de governo, se algum for, entretanto, constituído. Porém, faz cessar a discussão de assuntos pendentes e caducar as autorizações legislativas ao Governo (CRP, artigo 165.º, n.º 4).
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Quando o PR colocou a hipótese de dissolução da AR pela eventual migração de António Costa para a UE, alguém questionava a possibilidade de o fazer mantendo-se na AR uma maioria parlamentar de suporte ao Governo. E o PR escudou-se no exemplo de Jorge Sampaio.
Na verdade, em 2004, Jorge Sampaio decretou a dissolução da AR onde persistia uma maioria de suporte ao Governo liderado por Santana Lopes, o qual estava a quebrar-se por fratura interna e pela contestação dos barões partidários. Seria possível a maioria gerar nova solução governativa?
Tal dissolução mereceu assentimento generalizado dos portugueses, mas foi objeto de crítica apoiada em pretensos fundamentos constitucionais, como: a dissolução não deveria ter ocorrido por as queixas se referirem ao Governo e não à AR; o Governo continuava a dispor do apoio da maioria parlamentar, pelo que a dissolução abria caminho à presidencialização do regime e induzia instabilidade. Ora, em sistema presidencial, o PR não tem o poder de dissolução. Este poder só existe nos sistemas parlamentares (onde é, de facto, um poder do primeiro-ministro) e em sistemas semipresidencialistas (onde é um poder do PR eleito por sufrágio universal). Por isso, o poder de dissolução livre nunca poderá conduzir à presidencialização do regime.
Também não era inédita tal dissolução e não era verdade que o Presidente francês alguma vez se atrevera a tanto. Ora, na França, o primeiro ato do PR eleito é dissolver a Assembleia sempre que nela exista uma maioria contrária à maioria presidencial. E, entre nós, duas dissoluções tinham sido feitas contra a vontade da maioria parlamentar. Em 1983, o Presidente Eanes recusou o Governo que a maioria parlamentar lhe propunha e dissolveu a AR. Em 1987, o Presidente Soares foi mais longe: a maioria na AR demitiu o Governo e apresentou ao Presidente uma alternativa de governo. Porém, o PR deixou o Governo demitido em funções e dissolveu a AR. Só que eram maiorias constituídas ad hoc opostas ao partido que fora mais votado em eleições.
Não obstante, há sempre legitimidade constitucional para a dissolução da AR. Se a Constituição de semipresidencialismo impõe a eleição direta e universal do PR (e, entre nós, por maioria absoluta dos votantes e com mandato de duração superior e não coincidente com o dos deputados) é para lhe conferir legitimidade que o habilite a exercício de funções independente, não condicionado por qualquer pressão ou vontade da maioria parlamentar.
Ao dissolver a AR, o PR não sanciona malfeitorias cometidas pelo Governo ou pela Assembleia, o que seria incompatível com a legitimidade democrática, direta ou indireta, destes dois órgãos. O poder de dissolução significa, sim, a tentativa de resolução de crise ou bloqueio institucionais através da antecipação das eleições parlamentares. Formando a convicção, de modo inteiramente livre e responsável, de que a AR esgotou politicamente as possibilidades de gerar soluções governativas adequadas à superação de uma crise política, o PR remete a decisão para o Povo, chamando-o a eleger nova Assembleia, porque vê nisso uma necessidade.
É por se tratar de um poder de livre exercício, subordinado exclusivamente à interpretação que o PR faz do interesse público, que o poder de dissolução identifica, em última análise, a natureza específica do semipresidencialismo. A faculdade de apelar diretamente ao Povo, chamando-o a decidir, é um poder determinante nas mãos de um Presidente eleito por sufrágio universal. Com ele, o PR detém a chave de funcionamento do sistema político e só essa relevante posição explica a razão por que, três anos antes da eleição presidencial, se discutem candidaturas presidenciais.
Este poder não tem de ser exercido, mas a sua existência e configuração constitucional como poder de livre exercício do PR obriga qualquer maioria parlamentar, por mais absoluta que seja, a considerar a opinião do PR, a aceitar a sua magistratura de influência e a conformar-se com o exercício efetivo dos seus poderes. Importa que esta prerrogativa presidencial surja sempre da quase necessidade e não tenda a capricho ou a arma de arremesso, muito menos de bomba atómica, como é costume dizer-se. E nunca deve servir de ameaça ou ser anunciada a longo prazo.
17/10/2022