Do aquém e além-mar

 Do aquém e além-mar

Escrevo de Teresópolis, uma cidade nas montanhas a menos de uma hora e meia de carro do Rio de Janeiro, caso o trânsito colabore. Não chega a ser uma cidade pequena, mas classificá-la como média exigiria uma certa dose de boa vontade. Aqui comemos bacalhau apenas em datas festivas, por costume sim, mas também pelo preço tão salgado quanto o peixe. Caso exageremos no almoço de páscoa, é possível recorrer a um empréstimo bancário que, em média, nos custará 7% de juros ao mês. Fosse Teresópolis uma cidade portuguesa, ela disputaria o posto de terceiro maior centro urbano do país e bacalhau seria um prato cotidiano que não levaria ninguém a insolvência financeira. Mas se mesmo assim um empréstimo fosse necessário, seria possível contraí-lo também por 7% de juros, ao ano, mas isso é detalhe. Como se vê, tudo é relativo.

Mas para além do trivial, há diferenças mais graves entre nós. A mortalidade infantil até o primeiro ano de idade é de 3.1 óbitos em mil crianças nascidas vivas em Portugal, contra 12.8 no Brasil. Desconsiderando a subnotificação esperada por se tratar de prática ilegal, 993 mortes decorrentes do aborto clandestino foram contabilizadas no Brasil entre 2006 e 2015. Já em Portugal, desde 2007, este não é mais um problema. A população carcerária portuguesa é estimada em 107 detentos por cem mil habitantes, sendo 19,2% deste total ainda no aguardo de julgamento. Já o Brasil prende mais que o triplo, 357 por cem mil, 30,4% ainda sem sentença. Mas encarcerar parece não ser a solução já que no quesito homicídios intencionais os brasileiros abrem larga margem, 27,4 contra 0,8 por cem mil habitantes. Ainda que estatisticamente irrelevante, nesse caso vale ressaltar os números totais, foram cinquenta e sete mil trezentas e cinquenta e oito pessoas assassinadas em 2018, o último ano pesquisado, contra 81 em Portugal. O direito à vida é relativo.

Se em Portugal 100% do lixo produzido é devidamente recolhido, 9,6% dos domicílios no Brasil não contam com coleta regular de resíduos sólidos, o que faz com que quase 20 milhões de brasileiros tenham que encontrar um destino ou conviver com a sujeira que produzem. Em Portugal, 0,4% da população não tem acesso a quaisquer das mais básicas formas de saneamento, no Brasil são 11,7%, ou quase 25 milhões de habitantes (e seus dejetos) desamparados. Mas há os que nem casa têm. Segundo a OCDE, 3396 moravam nas ruas de Portugal em 2018. No Brasil eram mais de cem mil na última tentativa de contagem, em 2016, número inescapavelmente aquém da realidade atual. Em estimativa que contempla a população vivendo em moradias precárias, superlotadas ou acima de suas capacidades financeiras, o déficit habitacional brasileiro chegaria a 7.7 milhões de famílias, ou cerca de 25 milhões de pessoas que não possuem local adequado para morar. O direito à dignidade é relativo.

Pelas últimas estimativas disponíveis, 12,1% da força de trabalho portuguesa está ocupada no setor informal, sem garantias de proteção social governamental. No Brasil, antes da pandemia, eram 38 milhões de pessoas na informalidade, ou 40,6% do total. Já no levantamento mais recente, em meio à crise sanitária, a parcela caiu para 36,9%, ou 6,038 milhões de trabalhadores que migraram da precariedade para… o desemprego, nada é tão ruim que não possa piorar. Muitos desses informais constavam do contingente de 13 milhões de brasileiros que viviam abaixo da linha da pobreza até o final do ano passado. E o conceito de linha da pobreza é um arbítrio bem generoso, 145 reais mensais, ou algo em torno de 23 euros. É mais que um Portugal inteiro de miseráveis. Mas não há só más notícias, os 42 bilionários brasileiros viram o conjunto de suas fortunas crescer 27% durante a pandemia, agora somam juntos 157,1 bilhões de dólares (ou mil milhões, como dizem por aí). Até o capitalismo é relativo.

Há poucos dias, Portugal registrou as primeiras 24 horas sem mortes por Covid-19. A preservação da vida não deveria ser motivo para festejos mas, mesmo que por ora efêmera, esta é sim uma conquista. E ela só foi possível porque há ainda um outro elemento que nos separa: a capacidade de se indignar por uma morte evitável. No começo disseram que o vírus era democrático, que atingia a todos, sem clivagens. No Brasil, contudo, nem talvez a mais democrática das doenças é de fato justa, ela mata majoritariamente os mais pobres. Talvez assim seja mais fácil de entender porque cem mil mortes não causem muita indignação por aqui. Se tudo mais é relativo, por que uma pandemia também não haveria de ser?

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Rodrigo Monteiro Carvalho

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