Do céu caiu uma estrela: “It´s a Wonderful Life”
Nas muitas festas de Natal e de fim de ano que passei na Alemanha, junto dos meus pais, este era o filme preferido pelas emissoras de TV alemãs. Também era um dos filmes preferidos do meu pai, que admirava o actor James Stewart.
Sem dúvida inspirado pelo belo relato de Charles Dickens, Um Conto de Natal (A Christmas Carol, publicado em 1843), mas navegando num sentido narrativo contrário. Se a personagem de Dickens se torna aborrecida e depreciável (basta ver algumas das caricaturas do senhor Scrooge, o velho avarento, tanto nas ilustrações como nas bandas desenhadas, ou nas diversas adaptações para o cinema), a personagem que Stewart representa (George Bailey) é um homem bondoso, altruísta e extremamente respeitado pela comunidade onde vive, Bedford Falls.
Em Bedford Falls, o habitante mais poderoso é Henry F. Potter (Mr. Potter, interpretado pelo grande actor Lionel Barrymore), um negociante ambicioso e de poucos escrúpulos, que procura controlar a cidade. George Bailey resolve então apoiar os cidadãos com a sua pequena instituição bancária, mas, devido a um desvio de um empréstimo que contraíra, entra em falência. Desolado perante esta situação inesperada, resolve, na véspera de Natal, cometer suicídio, atirando-se de uma ponte, mas é impedido de fazê-lo por Clarence, seu anjo-da-guarda (ainda em estado de estágio). O anjo Clarence (interpretado pelo actor Henry Travers) mostra-lhe como seria a vida da sua família e da sua cidade se ele nunca tivesse existido.
Assim, o filme deambula por instantes significativos na vida de Bailey, autênticos flashbacks, que lhe mostram quão importante foi a sua intervenção naqueles momentos. Com a idade dos 12 anos, salvou o seu pequeno irmão Harry de morrer afogado, quando este caiu num lago de gelo quebradiço. Também quando trabalhava na farmácia da cidade e reparou que o farmacêutico, o senhor Gower, entristecido pela morte do seu filho, colocara acidentalmente veneno no medicamento de uma criança. George logra evitar-lho, mas o farmacêutico reagiu de uma forma violenta, batendo-lhe.
Mais tarde, George assumirá a defesa dos interesses dos habitantes na instituição bancária que o seu pai fundara e com a qual combate as tentações especulativas de Henry F. Potter, o homem mais rico do condado, um autêntico tubarão dos negócios, que é dono de um banco, da imprensa, dos hotéis e de todos os negócios rendíveis da cidade.
Com o decorrer dos anos, George constrói Bailey Park, uma urbanização de pequenas moradias construídas com os empréstimos concedidos pela sua companhia, que permitirá aos moradores serem donos das suas próprias casas e não terem de pagar rendas excessivas a Henry Potter. Quando rebenta a II Guerra Mundial, Harry é piloto de aviação e acabará por derribar um avião “Kamikaze” (1) em defesa dos ocupantes de um navio anfíbio, salvando a vida de todos eles (2).
No fim da guerra, de regresso à sua cidade, as dificuldades económicas se agudizam e, na noite de Natal, embebeda-se e é agredido. Enquanto atravessa uma ponte com a intenção de suicidar-se, atirando-se ao rio, vê um ancião cair nas águas. Mais uma vez, George esquece todos os seus problemas e lança-se para salvar o velho, em vez de se suicidar. Enquanto secam as roupas molhadas, o homem revela-lhe que se chama Clarence e que é o seu anjo-da-guarda. Perante o desespero de George mostra-lhe como seria a sua cidade se ele não tivesse nascido.
Convencido de que Clarence é, realmente, o seu anjo-da-guarda, ele retorna à ponte onde havia tentado o suicídio e pede a Deus que o restitua à vida. Assim, volta para casa muito feliz, desejando a todos aqueles que encontra no caminho um Feliz Natal, porque recuperou a sua vida, o seu irmão, a sua esposa, os seus filhos, a sua mãe e todos os amigos e vizinhos, pelos quais tanto se sacrificou. De regresso em casa, um sino toca na árvore de Natal e a filha de George lembra uma história: “Cada vez que um sino toca, um anjo recebe as suas asas”. Isso anunciava que Clarence, o anjo-da-guarda de George, tinha finalmente recebido as dele!
Não posso falar deste filme sem mencionar o seu realizador, Frank Capra, um dos grandes realizadores do cinema norte-americano, de um talento invulgar na construção de melodramas sempre recheados de enorme humanidade e humor. Seria fastidioso enumerar a lista do seu contributo no cinema. Ele é um dos grandes criadores que soube fazer do cinema uma arte de magia e de ilusão.
Do céu caiu uma estrela (de 1946) é, talvez, o filme mais conhecido de Capra. Foi nomeado para cinco prémios Óscar da Academia, incluindo os de Melhor Director e de Melhor Fotografia. O filme renasceu graças à televisão, onde se tornou um clássico do Natal em muitos países. Neste então novo meio de comunicação, ficou como mais uma tradição de Natal.
O American Film Institute considera-o um dos maiores filmes de todos os tempos, ocupando o décimo primeiro lugar numa lista dos 100 melhores filmes norte-americanos.
Estando a nossa tradição ibérica do Natal ligada aos Reis Magos e ao Presépio, não resisto a citar o epílogo do conto O Presente dos Magos de O. Henry (3), que nos fala do papel destas três figuras que animam, com a sua presença, a época natalícia:
“[…] Os Reis Magos, como sabem, eram homens sábios – maravilhosamente sábios – que trouxeram presentes para o bebé que estava numa manjedoura. Eles inventaram a arte de dar presentes de Natal. Sendo sábios, os seus presentes eram, sem dúvida, inteligentes, possivelmente tendo o privilégio de troca em caso de repetição. E, aqui, relatei a crónica de duas crianças bobas que moravam num apartamento e que, de forma imprudente, sacrificaram os maiores tesouros da casa, um pelo outro. Mas uma última palavra para os sábios dos dias de hoje, é que, de todos os que dão presentes, esses dois foram os mais sábios. De todos os que dão e recebem presentes, os que fazem como eles são os mais sábios. Em todo lugar são os mais sábios. Eles são os Reis Magos.”
Um Bom Natal para todos!
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Notas:
(1) “Kamikaze” foi a designação atribuída aos pilotos de aviões japoneses que, carregados de explosivos, promoviam ataques suicidas contra os navios, principalmente os porta-aviões dos Aliados, sobretudo os norte-americanos.
(2) James Stewart tornou-se a primeira grande estrela do cinema norte-americano a se alistar no Exército dos Estados Unidos para lutar na Segunda Guerra Mundial. A sua família tinha profundas raízes militares: os seus dois avôs lutaram na Guerra Civil e o seu pai serviu durante a Guerra Hispano-Americana e na Primeira Guerra Mundial.
(3) O. Henry é o pseudónimo do famoso contista norte-americano William Sydney Porter, nascido em 1862, na Carolina do Norte, tendo falecido em 1910.
22/12/2022