Don Juan e a Morte

 Don Juan e a Morte

Marcelo “Lafontana” Redondo no Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto. (© Marcelo Lafontana / TFA – Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde, TNSJ)

“E que o devedor não pense / que Deus castigo não traga; / o prazo sempre se vence / e a conta sempre se paga.” (A partir de “O Enganador de Sevilha”, de Tirso de Molina)

(Direitos reservados)

O título deste artigo poderia ser, perfeitamente, o título de mais uma das centenas de obras literárias dedicadas a esta figura que, nascida na Península Ibérica, atravessou fronteiras para se converter num mito universal.

Junto às muitas tradições de 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, há uma da qual ainda fui testemunha na minha infância. Estou a referir-me à representação teatral da peça “Don Juan Tenorio”, de José Zorrilla1, autor espanhol do romantismo peninsular.

O tema de Don Juan e o legado literário do Doutor Fausto constituem os dois grandes pilares de uma tradição europeia rica em produção não apenas na literatura, mas também na ópera, na poesia lírica e no cinema.

Don Juan Tenorio em Alcalá de Henares tornou-se um dos eventos mais concorridos.. (españaenfiestas-tnb.es)

Alcalá de Henares, a cidade berço de Miguel de Cervantes, com as suas representações desta peça, mantém a tradição. Don Juan, um dos poucos mitos espanhóis universais, está ligado à “data da morte”, sendo “Don Juan Tenorio”, de Zorrilla, a única peça espanhola que, durante décadas, foi apresentada todos os anos e na mesma data fixa.  

Plaza Cervantes, em Alcalá de Henares. (alcalingua.com)

A cidade de Alcalá de Henares, através da fundação Colegio del Rey, tem-se encarregado de manter e de recuperar esta tradição em Espanha, nos últimos anos, que se tornou um verdadeiro cerimonial em alguns países da América Latina, fundamentalmente no México. Como começou a tradição de representar a peça de Zorrilla nesta data? São, pelo menos, duas as razões: o facto de, talvez, como defendem alguns historiadores, ter sido escrita nessa data; ou a outra que assinala a sua estreia nesta data.

Uma das vinhetas da história em quadrinhos adaptada pelo
guionista Ricardo Vilbor e pelo ilustrador Claudio Sánchez,
com a ajuda da gravadora valenciana Grafito Editorial, que
dão nova vida aos personagens imortais de José Zorrilla, com base na
sua obra “Don Juan Tenorio”. (diariodevalladolid.elmundo.es)

Uma tradição que começou a acontecer no final do século XIX e que continua, até hoje, nos espaços teatrais de toda a Espanha e na América Latina. É o caso das representações da peça ao ar livre na Praça da Catedral de Teruel e também daquelas que já referimos e que acontecem em Alcalá de Henares, bem como no Teatro de la Villa del Conocimiento y las Artes, no município sevilhano de Mairena del Alcor.

Na representação, assistimos a uma celebração religiosa e igualmente pagã que, no entanto, está muito longe de outras tradições que se realizavam nas vésperas daquele dia. Cerimónias de recolhimento, rituais de silêncio e de luto, ida aos cemitérios e outros actos.

Catedral de Santa María de Mediavilla, em Teruel. (turismodearagon.com)

Em jeito de sinopse, registo o seguinte: “Na peça Don Juan Tenorio, na noite de 31 de Outubro, assistimos a uma história de amor que culmina, no seu acto final, no Dia de Todos os Santos; daí que esta seja uma das razões pelas quais é comum que muitos teatros do nosso país realizem uma revisão teatral deste clássico da literatura. Porém, na origem desta tradição está uma disparidade de critérios já que outras teorias sugerem, sem confirmação oficial, que a obra foi escrita no dia 1 de Novembro e daí a data para ser executada todos os anos. É que, ao longo da obra, é mostrada toda uma série de recursos dramáticos relacionados com a morte, com as formas fantasmagóricas, com a redenção ou com a salvação da alma, que bem poderiam estar associadas ao Dia dos Mortos, no nosso país.”

Embora a peça tenha estreado em 1844 e, hoje, seja a peça mais encenada na história do teatro em Espanhol, a princípio não foi apreciada. Foi no dia 28 de Março daquele ano, no Teatro de la Cruz de Madrid, e passou indiferente ao público da época. Alguns meses depois, os actores e produtores decidiram dar outra “chance”, coincidindo com o primeiro dia de novembro, pensando que, por ter acontecido entre os falecidos, faria mais sentido. O êxito foi rotundo.

Espectáculo teatral “Don Juan”. (Créditos fotográficos: Prefeitura – elresurgirdemadrid.com)

No mesmo dia da sua estreia em Espanha, foi apresentada no México, no Teatro Santa Ana ou Teatro Imperial, motivo da fundação da Companhia Nacional de Teatro do México, a pedido do imperador Maximiliano. Posteriormente, continuou a ser representada sempre a 1 de Novembro, na Espanha; e ocasionalmente no México, até 1863, quando começou a tradição de apresentá-la, ao mesmo tempo, nos dois países, por iniciativa do próprio autor, José Zorrilla, de Francisco Abreu e dos empresários dos teatros Novedades de Madrid e Iturbide.

(65ymas.com)

Também no cinema, a importância da peça de Zorrilla ficou registada pelo facto de ter sido o argumento escolhido para o primeiro filme de ficção do continente latino-americano e, em Espanhol, foi realizado em 1898/1899, por Salvador Toscano. A popularidade foi tanta que, em 1908, surgiu uma nova versão. Nesta vez, realizada por Ricardo de Baños e por Alberto Marro. E Ricardo Baños repetiu-a novamente, em 1921.

Como observa Vitória Herrero, esta “história de amor, escrita por José Zorrilla, é uma das grandes obras da nossa dramaturgia”. O argumento de Don Juan aparece ligado aos temas do amor, do dinheiro, da inconstância, da traição, do destino, da fatalidade, da paternidade, da velhice, da fidelidade, da amizade, do temor, da redenção e da morte, com certeza.

Gravura da peça de Molière e fotograma da película, de 1922, “Don Juan Tenorio”, realizada por Ricardo de Baños. (Direitos reservados)

No “Dictionaire de Don Juan”, de Pierre Brunel (edição de Bouquins, em 1999), o autor reúne mais de 100 colaboradores que escreveram 300 notas dedicadas a escritores, músicos, pintores, personagens, lugares, temas e referências que nos permitem acompanhar todas as metamorfoses de Don Juan. Neste livro, que possuo entre as minhas preciosidades, não contam algumas notas às obras portuguesas sobre o tema, como a peça de António Patrício, como “Don Juan e a Máscara, Don Juan no Jardim das Delícias”2, do amigo açoriano Norberto Ávila, nem também a uma das últimas obras de José Saramago, “Don Giovanni ou O dissoluto absolvido”, de 2005 e reeditada em 2018.

Sobre este livro de José Saramago, transcrevo a sinopse de divulgação, pela Porto Editora: “Partindo da ópera de Mozart Don Giovanni ou O Dissoluto Punido em que Don Giovanni é condenado aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, José Saramago, em Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido reanalisa o mito: será Don Giovanni culpado? E o Comendador, e Dona Ana, e Dona Elvira, e Don Octávio? Serão um modelo de virtudes? Onde está a culpa? Onde está a virtude? Onde está a hipocrisia?”

(Direitos reservados)

De todas as versões do tema de Don Juan, a que mais gosto é a de Molière: “Dom Juan, ou le Festin de Pierre”, tragicomédia em cinco actos, estreada no Palais Royal, em 15 de Janeiro de 1665. Nesta versão, no último acto, Leporello (o criado de Don Juan que, no decurso de toda a peça, trata inutilmente de trazer o seu senhor à razão, à moderação e ao bom caminho do arrependimento) acaba num cúmulo de exaltação por claudicar nas suas intenções, pouco antes, mesmo muito pouco antes da ida de Don Juan para os infernos, proferindo este magnífico discurso (cena II – acto V):

“LEPORELLO – Ó Céu, o que sou obrigado a ouvir por um salário. Só lhe faltava mesmo a hipocrisia para ser um… (movimento de lábios) completo, e atingir o cúmulo da abominação. Esta, senhor, me faz perder totalmente as estribeiras. Sufoco se não disser o que sinto. Faça comigo tudo que quiser, espanque-me, queime-me, afogue-me, mate-me, enfrento tudo. Mas tenho que aliviar meu coração e, como criado fiel, dizer o que devo dizer. Saiba, senhor, que tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia quebra. Como diz muito bem esse autor que eu não sei qual é, o homem está no mundo como o pássaro no galho; o galho, como o senhor não ignora, está preso à árvore; quem se apoia na árvore segue os bons preceitos; os bons preceitos valem mais do que as belas palavras; as belas palavras ouvem-se na corte; na corte, claro, estão os cortesãos; os cortesãos seguem a moda; a moda nasce da fantasia; a fantasia é uma faculdade almática, da alma; a alma é o que nos dá a vida; a vida termina com a morte; a morte faz pensar no Céu; o Céu está sobre a terra; a terra não é o mar, o mar é assolado por tempestades; as tempestades ameaçam os navios; os navios precisam de bons pilotos; bons pilotos são prudentes; a prudência não é virtude dos jovens; os jovens devem obediência aos velhos; os velhos amam a riqueza; os que têm riqueza são ricos; ricos não são pobres; pobres passam necessidade; a necessidade não tem lei; quem não tem lei é um animal selvagem; e, sendo assim, o senhor vai acabar no Inferno.”

Leporello (Créditos fotográficos: Photo©Beatriz Schiller2011 – br.pinterest.com)

No Porto, na década de 80, como espectador, assisti à representação desta peça pela desaparecida companhia de teatro Os Comediantes. Ou seja, a peça “Don Juan Tenorio”, encenada por Moncho Rodriguez, em 1985, com tradução do dramaturgo Norberto Ávila, no histórico grupo de teatro Modestos, frente ao edifício do Jornal de Notícias.  Mais tarde, numa curiosa e singular versão para um teatro de papel e de sombras, “O Convidado de Pedra”, a partir de “O Enganador de Sevilha”, de Tirso de Molina, com encenação de Marcelo Lafontana, numa co-produção do TNSJ/Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde, no ano de 2006 (segundo dados fornecidos pela directora do Centro de Documentação Teatral do TNSJ, Paula Braga, a quem expresso aqui os meus mais sinceros agradecimentos). 

(iloveflores.com)

Muitas são os rituais ligados à morte e ao seu culto. A este propósito, destaca-se um país como o México, onde as tradições europeias se aliaram de uma forma quase natural ao culto dos mortos que existiam na civilização pré-colombiana. Enquanto na Europa se adornam as sepulturas com crisântemos (em Grego: flor de ouro), flores de origem asiática de notável significado na cultura chinesa e do Japão. Os mexicanos decoram os seus altares dedicados aos defuntos com a flor de Cempasúchil3, que, graças à sua cor e aroma, é um dos elementos mais representativos nas oferendas para os mortos.

(Créditos fotográficos: Getty Images – bbc.com)

Na manhã do dia em que escrevi este texto, cruzei-me com uma bruxinha. Constata-se, pois, a influência do mundo anglófono e do Halloween (Dia das Bruxas), na véspera do nosso Dia de Todos os Santos!

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Notas:

José Zorrilla y Moral (1817-1893). (dbe.rah.es)

1 – José Zorrilla y Moral (1817-1893), poeta e dramaturgo romântico espanhol. As suas poesias líricas surgem em 1837 e, principalmente, em 1841, com a publicação de “Os Cantos do Trovador”. Contudo, a sua reputação se definiu em proporções mais extraordinárias nos versos inspirados em lendas e motivos de tradições nacionais, a sua peça mais famosa é “Don Juan Tenorio”, representada universalmente.

Peça “D. João no Jardim das Delícias”, de
Norberto Ávila, encenada por Carlos Avilez.
(tecascais.com)

“Don Juan Tenorio” é um drama religioso-fantástico em duas partes. Escrita em 1844, é a mais romântica das duas principais interpretações literárias em Castelhano da lenda de Don Juan, sendo a outra “El burlador de Sevilla o El convidado de piedra” (“O Burlador de Sevilha ou o Convidado de Pedra”), de 1630, que é atribuída a Tirso de Molina. A peça de Zorrilla deve muito a esta versão anterior.

Tirso de Molina é o pseudónimo de Frei Gabriel Téllez, religioso espanhol que se destacou como dramaturgo, poeta e narrador do Barroco (1579-1648).

2 – “D. João no Jardim das Delícias” (1985). Ed. Rolim, Lisboa, 1987. Peça estreada pelo Teatro Experimental de Cascais, em 1988.

3 – A flor de Cempasúchil é originária do México, o seu nome, na língua nahuatl, significa “vinte flores” ou “várias flores”.

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13/11/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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