Doze tiros na noite boémia de Manaus
O cantor Ronaldo Fonseca Quadro, conhecido como “Maranhão dos Teclados”, foi brutalmente assassinado com 12 tiros, enquanto preparava a sua apresentação num bar, em Manaus. A notícia saltou-me aos olhos, mal abri o computador numa destas manhãs. Em segundos, vi-me no Bar do Armando, português de Arganil, que conheci em 1995, quando vagabundeei pela capital do Estado do Amazonas.
Depois, em pezinhos de lã, fui percorrendo o texto onde se noticiava o assassinato do cantor, que também exercia o mister de “operador de máquinas”. O atentado ocorrera no Bar Pit Bull, na Avenida do Mulateiro, no bairro Santa Etelvina, na zona Norte de Manaus. E, embora lamentando a morte de Ronaldo Quadro, suspirei de alívio por saber que o Bar do Armando não tinha sido o palco de tal tragédia.
Tenho uma ligação afectiva com a capital do Estado do Amazonas. Por ali andei, em Julho de 1995, depois de alguns dias passados entre os povos indígenas que vivem nas margens do Rio Negro1. Conheci Armando, da “Nossa Senhora da Nazaré”, por vontade do taxista que me transportou entre o Porto de Manaus2 e o “centro” da cidade. “Deixo-o aqui, na casa de um amigo português”, sentenciou, antes mesmo de eu ter oportunidade de lhe dizer para se dirigir ao Hotel Lagoa.
A decisão unilateral do condutor do “amarelo” fez-me conhecer Armando Dias Soares, a cidade de uma ponta a outra e o seu “bar”, que então se tornou a minha casa. Uma casa recheada de bons comeres, como as suas sandes de pernil e os seus lusos bolinhos de bacalhau, sempre acompanhados por “Antarcticas”, cervejas servidas bem geladinhas, muito samba e actuações, ao vivo, de muitos dos mais populares artistas locais. Como o agora assassinado “Maranhão dos Teclados”, “Pandeiro”, Agostinho Cabral, Fátima Silva ou Lucio Flávio.
Os meus dias em Manaus foram de intensa boémia. Nunca terminavam antes das quatro da manhã, hora a que o Armando fechava um “bar” que era (é) poiso de jornalistas, como o Mário Adolfo, o único que teve o privilégio de ouvir cantar Luciano Pavarotti no Teatro Amazonas, bem como de artistas plásticos e de escritores e intelectuais.
As gentes de Manaus adoravam o português de Arganil4, que foi personagem principal de um enredo de Carnaval designado “Armando Brasileiro”.
Tanto que, no dia 11 de Fevereiro deste ano, assinalaram os 60 anos do “botequim” com festa de arromba no icónico Largo de São Sebastião, sob o tema: “60 na BICA só não vai quem já morreu: é festa de santo, boêmio e ateu. Vumbora, minha gente!”
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Notas:
1 – O rio Negro nasce na Colômbia e ali é chamado de rio Guainía. É o sétimo maior rio do Mundo em volume de água. E o maior afluente do rio Amazonas. Após passar por Manaus, o rio Negro abraça o rio Solimões. A partir daí, o rio Solimões passa a chamar-se rio Amazonas. O encontro entre o rio Negro, de água preta, e o rio Solimões, de água barrenta, leva a que as águas dos dois rios corram lado a lado sem se misturar por uma extensão de mais de seis quilómetros. Tal acontece devido à diferença entre a temperatura e densidade das águas; e, ainda, à velocidade das suas correntezas. O rio Negro percorre dois quilómetros por hora (km/h), a uma temperatura de 28°C, enquanto o rio Solimões percorre 4 a 6 km/h a uma temperatura de 22°C. É uma das principais atrações turísticas da capital do Estado do Amazonas.
2 – O Porto de Manaus é considerado o “coração da Amazónia”. É o maior porto flutuante do Mundo, e serve os estados do Amazonas, de Roraima, de Rondônia, de Acre e de algumas áreas do norte do Mato Grosso. Foi projectado por ingleses e inaugurado em 1907, quando a cidade vivia o auge do ciclo da borracha. Isto é, o período, entre 1880 e 1910, que levou a uma intensa exploração de seringueiras e de produção de borracha na região amazónica. O ciclo da borracha mobilizou milhares de trabalhadores na extração do látex, matéria-prima da borracha.
3 – O Teatro Amazonas é o principal cartão-postal da cidade de Manaus. Está localizado no Largo de São Sebastião, em pleno centro histórico e foi inaugurado, em 1896, para atender ao desejo da “elite amazónica”. O edifício renascentista é considerado como um dos mais belos teatros do Mundo. Os detalhes únicos da sua cúpula, fazem dele um dos monumentos mais conhecidos do Brasil.
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4 – Armando Dias partiu em 2012, aos 77 anos de idade. A sua filha Ana Claudia é agora a responsável pelo “boteco” e guardiã da história escrita por seu pai na capital da Amazónia.
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24/07/2023