É a economia, estúpido!
As previsões da política externa dos Estados Unidos da América (EUA) são, em regra, uma trapalhada, como é verificável nos vários conflitos militares em que o país se viu envolvido, desde o Iraque ao Afeganistão. Nada seria tão apropriado para os EUA como a União Europeia (UE) acompanhar a sua deriva bélica e geoestratégica, como parece ainda estar a acontecer, enquanto o dólar e o euro não desnivelarem.
O realizador Oliver Stone, uns meses após a invasão da Ucrânia pela Rússia, alertou para a nova cortina de censura e propaganda que assola a Europa, facto inédito, contrastando, por exemplo, com a altura em que os EUA invadiram o Iraque, sob forte oposição de Jacques Chirac e do chanceler Gerhard Schröder. Para Stone, as lideranças dos países europeus perderam a autonomia e o orgulho, estão submetidas aos interesses dos EUA e revelam medo nas suas posições oficiais.
Ainda assim, a recente cimeira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contou com uma verdadeira contra-cimeira (a 26 de Junho de 2022), nas ruas de Madrid (incluindo partidos políticos, sindicatos e população), facto que os órgãos de comunicação portugueses fingiram ignorar – como, de resto, aconteceu em relação às manifestações de Munique, contra a cimeira do G7 (Grupo dos Sete). Uma das extraordinárias, senão estranhas, novidades que esta guerra nos trouxe foi a inconcebível manietação da opinião pública perpetrada pela imprensa do chamado “mundo livre”. Uma coisa é repudiar a invasão da Ucrânia ou odiar Vladimir Putin, outra é censurar a imprensa russa, ocultar as recentes aquisições de propriedades na Suíça por parte de gente do círculo íntimo de Volodymyr Zelensky, escamotear a resolução de 51 dos 55 chefes de estado da União Africana, ao terem boicotado a vídeoconferência com o presidente ucraniano, encobrir os crimes de guerra cometidos por soldados ucranianos ou enxamear os órgãos de comunicação de jornalistas e comentadores de guerra arregimentados pelos ditames de Bruxelas, que dança ao som da batuta de Washington. São cada vez mais aqueles que rotulam de idiotas os novos apparatchiks. O que faz Ursula von der Leyen, representante máxima de uma união de países que se reclama pacífica, tolerante e respeitadora dos direitos humanos, na cimeira da OTAN? – perguntamo-nos. Quanto a direitos humanos, Suécia e Finlândia já os engavetaram. O que vem a seguir se verá.
A cimeira da OTAN – muito em sintonia com a do G7, entenda-se –, com uma estratégia a dez anos, serviu essencialmente para concluir o seguinte: a Rússia é a maior e mais directa ameaça à segurança dos países da aliança militar. Excluir a Rússia da economia mundial pareceu, pois, ser o pressuposto do grupo dos mais ricos. Habituados a fazer capitular os outros, os EUA têm, como sempre tiveram, na Rússia um osso duro de roer. É inconcebível que naquele país tardassem a perceber que a Rússia estava já, há mais de dez anos, a preparar um novo mundo, aquilo a que, só quatro meses passados desde o início deste conflito, chamamos “nova ordem mundial”. Poucos haviam lido Escobar (Pepe) e, muito menos, o economista russo – entre vários – que obrigou alguns Estados a repensar os seus modelos e acordos económicos: Sergey Glasyev.
Nesta altura, depois de se especular sobre o estreitamento de relações económicas e políticas entre a Rússia, a China e a Índia, sobre os BRIC (acrónimo toponímico da cooperação económica entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, abrindo concertação à Indonésia, à Argentina, ao Irão, ao Iraque, à Arábia Saudita e a uma série de países do sudeste asiático), de se perceber que as operações militares são geralmente acompanhadas de um crescimento do produto interno bruto (PIB), de crer que, se o Banco Central da Rússia parar de desacelerar o crescimento económico e criar oportunidades de crédito para a substituição de importações, o aumento na produção industrial russa poderá crescer 10%, então, tudo somado, é caso para mudarmos de assunto. Isto sem falar no facto de a construção civil russa em território tomado estar já a antecipar-se ao grande apelo de reconstrução da Ucrânia, com esforço da UE, como patente na Declaração de Lugano (estima-se sete mil milhões de euros, muito aplaudidos na Conferência no dia 5 de Julho, propícios a negócios múltiplos e, como sempre, duvidosos). Business as usual.
A guerra militar, no meio disto tudo, é um fait divers. A grande Guerra – e agora entendemos melhor as palavras do major-general Agostinho Costa, pré-anunciando a Ucrânia tão-só como palco dos combates – trava-se ao nível da suspensão da ordem mundial assente no domínio exclusivo e hegemónico dos EUA e da manutenção do seu sistema unipolar, responsável, em boa parte, pela política de globalização que deslocaliza empresas como quem muda de camisa e, verdade seja dita, pela americanização da Europa. Chegou o tempo de um novo paradigma multipolar: as economias soberanas não podem sujeitar-se umas às outras, obrigando-se, assim, a manter e a respeitar equilíbrios e a eliminar monopólios. Era disto que os EUA não queriam falar, quando (nos) quiseram apontar um inimigo – ou um bode expiatório. Como também quiseram apagar a dívida de gratidão que os europeus tiveram – e têm – para com o sacrifício da Rússia (ainda integrada na URSS) para esta Europa, não germanizada, poder ser aquilo que é. Como também não explicaram ao mundo que a sua economia, presa por fios e pelo espectro de uma imprevisível inflação, e cuja dívida é detida pela China, pode gerar a próxima grande recessão do mundo ocidental e não só. Mas que importa? Esse tempo já passou.
A hesitação e o ruído das economias neoliberais europeias e dos EUA não são apenas encenação: são embaraço. E, provavelmente, medo.
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Nota do Director:
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07/07/2022