E a tal resiliência de Bolsonaro?

Thandy Yung (Unsplash)
As últimas semanas parecem ter o significado de uma reversão na capacidade de o Presidente Bolsonaro conduzir e controlar de forma absoluta a agenda política no Brasil. As pesquisas de opinião terminam por confirmar aquilo que se sente como tendência no interior da sociedade e nas ruas. Passados dois anos e meio desde o início de seu mandato, Bolsonaro passa a enfrentar dificuldades crescentes para implementar seu programa de governo. Na verdade, agora se confirma de forma efetiva que seu projeto é apenas atravessar as turbulências até outubro de 2022 para então tentar sua reeleição e, assim, permanecer por mais 4 anos à frente da Presidência da República. Além disso, não é plenamente recomendado confiar na manutenção da estabilidade democrática, uma vez que sua tentação autoritária não cansa de sugerir algum tipo de golpe, com apoio das Forças Armadas, para se manter no poder.
Os principais fatores que contribuem para esse quadro de descontentamento popular encontram-se na incapacidade de Bolsonaro em promover a recuperação da economia e na tragédia com que vem conduzindo a pandemia do coronavirus. As promessas do seu superministro da Economia revelaram-se uma farsa. Os índices de desemprego só fizeram aumentar desde janeiro de 2019 e a recessão das atividades de forma geral tem sido a marca de sua gestão desastrosa. Além disso, a preocupação com a inflação volta a frequentar os espaços das famílias e das empresas. Paulo Guedes mantém a ferro e fogo sua opção pelo austericídio, com um garrote pesado na condução da política fiscal. Assim, as verbas orçamentárias destinadas para despesas com saúde, educação, previdência e outras rubricas de natureza social seguem sendo reduzidas, ao contrário do que vem sendo praticado na grande maioria dos governos dos países do próprio centro do capitalismo.
Ao longo das últimas semanas vieram se somar a essa maré de péssimas notícias para o núcleo duro do governo uma avalanche de denúncias e escândalos de corrupção envolvendo muitos colaboradores do primeiro escalão e até mesmo os filhos do Presidente. A agenda da Comissão Parlamentar de Inquérito instalada no Senado Federal para averiguar a estratégia do governo perante a crise da covid 19 mantém acesa a chama de críticas e revelações da irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro perante os mais de 530 mil mortes desde o início da pandemia. A cada dia novos depoimentos confirmam as denúncias e abrem novos rumos de investigação sobre o uso irregular dos recursos públicos na compra de vacinas e esquemas de apropriação ilegal de verbas dos salários dos funcionários lotados nos gabinetes parlamentares dos membros de sua família. Afinal, ele tem um filho eleito senador, outro deputado federal e um terceiro vereador na cidade do Rio de Janeiro.
Acrescente-se a essa conjunto de informações as pesquisas relativas às eleições presidenciais de outubro de 2022. Com a anulação dos julgamentos ilegais que haviam sido perpetrados contra Lula, o ex presidente reaparece com muita força em todas as simulações realizadas atualmente. Todos os institutos que estão realizando esse tipo de sondagem apontam para a derrota de Bolsonaro e a vitória do oposicionista caso as eleições fossem realizadas hoje.

No entanto, não deve ser menosprezado o fenômeno que dá título a esse artigo: a impressionante resiliência que acompanha Bolsonaro desde o início de seu mandato à frente do Palácio do Planalto. Ele já atravessou diversos momentos de dificuldade política, com a saída de ministros e o afastamento de líderes políticos do campo conservador que o haviam apoiado nas eleições e no início de seu governo. Até o momento foram anunciadas 16 demissões de ministros.
O ex juiz Sérgio Moro, conhecido como “xerife da Operação Lava Jato” foi a primeira perda de maior relevância. Responsável pela condenação e prisão de Lula em processos marcados pela ilegalidade, com o intuito de impedir que o mesmo concorresse no pleito que elegeu Bolsonaro, Moro foi premiado com a nomeação para um superministério, envolvendo a pasta da Justiça turbinada com as atribuições de Segurança Pública. Deixou o governo pouco mais de um ano depois da posse, em abril de 2020, aceitando um convite para trabalhar no setor privado.
Pouco menos de dois meses, quem saiu da equipe debaixo de críticas generalizadas foi o então Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ele fazia parte do chamado “núcleo ideológico” de Bolsonaro, por sua vinculação com o guru de todos, Olavo de Carvalho. Weintraub teve de fugir do país para os Estados Unidos – com um passaporte diplomático a que não teria mais direito – por receio de ser preso pelas autoridades policiais em razão de inúmeros processo de improbidade administrativa que correm contra ele nas varas da justiça. No entanto, a lealdade e o agradecimento do Presidente para com o auxiliar ficaram manifestos com sua indicação para um cargo na diretoria do Banco Mundial em Washington.
A política externa tem sido alvo de críticas antes mesmo da posse do novo governo. O alinhamento automático com a diplomacia de Trump e um anticomunismo tacanho provocaram um profundo isolamento do Brasil no cenário internacional. A situação foi se tornando cada vez mais insustentável e o chanceler, que havia se orgulhado de transformar o Brasil em um pária nas relações internacionais, foi finalmente exonerado. Ernesto Araújo era apenas um membro inexpressivo da carreira do Itamaraty, mas sua vinculação a Olavo Carvalho e ao núcleo duro da família do Presidente haviam retardado a demissão tão aguardada. Não por acaso a saída ocorreu no final de março de 2021, pouco depois da posse de Joe Biden na Casa Branca.

Outra área do governo que vinha sendo bombardeada na política local e na imprensa internacional refere-se ao meio ambiente. Para a pasta Bolsonaro havia nomeado Ricardo Salles, um nome tão polêmico quanto defensor do agronegócio, dos agentes do desmatamento ilegal e do garimpo clandestino. Em junho de 2021, a pressão pela demissão torna a sua permanência insustentável. Dentre inúmeras denúncias anteriores, ele havia sido indiciado por ações em favor do maior escândalo de exportação de madeira irregular na Amazônia e terminou por ser exonerado. Assim como os anteriores, Salles era considerado um troféu para o governo, exatamente por suas posições extremadas contra as políticas de sustentabilidade. Sua saída expressou outra perda para o grupo mais afinado com o negacionismo e com a articulação da ultra direita no plano local e internacional.

Como essas demissões não pareciam abalar a popularidade do governo e nem a confiança de uma parcela considerável da população, ganhou espaço entre os analistas a hipótese da resiliência. Afinal não era para ser menosprezada mesmo a capacidade de Bolsonaro manter mais de 30% de avaliação de “ótimo e bom” para o quesito de uma gestão completamente desastrosa em termos da economia e da pandemia. Mas as coisas mudaram com o isolamento. O Presidente acabou sendo obrigado a se render à “velha política”, negando assim um de seus bordões mais apreciados desde a época da campanha eleitoral. Estabeleceu uma aliança com as lideranças do chamado “centrão” no Congresso Nacional, negociando de forma escandalosa o liberação de cargos e verbas em troca de apoio no legislativo. Esse grupo é conhecido por suas práticas de corrupção e assalto aos recursos públicos, tendo sido base de apoio para qualquer governo ao longo das últimas quatro décadas.
Do outro lado da equação para assegurar sua sobrevivência política, Bolsonaro recheou a Esplanada dos Ministérios com militares da ativa e da reserva em cargos da administração pública federal, com o intuito explícito de se blindar dos ataques contra si mesmo, a sua família e a sua equipe de governo. O Presidente faz provocações diárias contra as instituições democráticas e republicanas, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, brandindo de forma ameaçadora a cartada do golpe e do retorno aos tempos da ditadura militar.
No comando da economia, Paulo Guedes continua prestando um bom serviço aos interesses do grande capital
No entanto, as semanas mais recentes parecem apontar para o esgotamento dessa tal de resiliência. O isolamento do chefe do governo político é crescente e a perda de apoio popular e mesmo entre as elites também são evidentes. Até mesmo os setores ligados ao fisiologismo partidário parecem vacilar nesse apoio a Bolsonaro, uma vez que as pesquisas apontam para uma possível derrota nas eleições do ano que vem. Nesse caso, o pragmatismo desse tipo de liderança política oportunista e conservadora sugere abandonar o barco antes da consumação do naufrágio que se avizinha.
O quadro político e institucional é complexo. A gravidade do momento faz com que a crise ganhe novos contornos a cada dia que passa. No comando da economia, Paulo Guedes continua prestando um bom serviço aos interesses do grande capital. A possibilidade de alguma recuperação das atividades econômicas pode render algum tipo de fruto político a Bolsonaro. O desafio lançado a cada instante pelo ex capitão de não reconhecer o resultado das urnas caso ele não saia como vencedor paira como uma ameaça permanente sobre o conjunto da sociedade.
Ao que tudo indica, a resiliência transformou-se em estratégia de desespero. Acuado por todos os lados, Bolsonaro parece reagir com medo e com raiva. O maior risco é que as instituições democráticas não sejam capazes de impedir uma nova aventura golpista.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal no Brasil.