É preciso reforçar o Serviço Nacional de Saúde
Esta frase é uma constante que perpassa no discurso político de hoje e se adoptarmos a moderna linguagem dos “pilares”, fará parte do 1º pilar do tão falado Plano de Recuperação e Resiliência encomendado pelo Governo para entregar em Bruxelas e permitirá a “chuva” de euros que muitos esperam.
Mas será que essa “chuva” vai reforçar o nosso Serviço Nacional de Saúde? Ou será que alguns dos que apregoam o reforço do SNS estão antes a pensar na chuva, que através dos “out-sourcings” irão inundar os bolsos dos interesses privados lucrativos na Saúde?
O Serviço Nacional de Saúde reforça-se pondo a funcionar a Lei de Bases da Saúde, Lei nº 95/2019 aprovada em 19 de Julho de 2019 e em vigor desde Novembro de 2019. É isso que é imperioso. Torna-se, pois, necessário que as 37 Bases constantes do diploma sejam operacionalizadas. E de entre elas saliento a Base 9, fundamento de toda a estrutura e igualmente fundamental para uma resposta adequada e célere a situações como a da actual Pandemia.
A Base 9 (Sistemas locais de saúde) diz: “Aos sistemas locais de saúde, constituídos pelos serviços e estabelecimentos do SNS e demais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde, cabe assegurar, no âmbito da respetiva área geográfica, a promoção da saúde, a continuidade da prestação dos cuidados e a racionalização da utilização dos recursos.”
É urgente, para além de medidas avulsas que poderão ser importantes no que diz respeito aos profissionais e aos meios técnicos necessários, que se elabore e publique o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, instrumento jurídico fundamental para que se atinjam os objectivos da Lei de Bases do SNS.
A anterior Lei nº 56/79 foi alvo de graves ataques jurídicos. Para além da inércia na elaboração dos decretos regulamentares, o VIII Governo Constitucional, presidido por Pinto Balsemão e do qual também fazia parte o actual Presidente da República, como Ministro dos Assuntos Parlamentares, publica o Decreto-Lei nº 254/82 visando a criação das Administrações Regionais de Saúde (ARS) dotadas de personalidade jurídica e com autonomia administrativa e património próprio. Aparentemente tudo estaria bem. Só que havia uma rasteira jurídica. Esta estava no seu artigo 17º que, sozinho, revogou 46 artigos da Lei criadora do SNS, isto é, pura e simplesmente acabando com ele.
O Presidente Ramalho Eanes pediu a fiscalização da Comissão Constitucional do Conselho da Revolução, mas tudo isto coincidiu com a extinção deste e com a Criação do Tribunal Constitucional que só em 11/04/84 elaborou o Acórdão nº 39/84 (cuja leitura aconselho) que se pronunciou pela inconstitucionalidade dessa revogação considerando que ela se traduzia na extinção do Serviço Nacional de Saúde.
Por tudo isto considerei numa entrevista recente que as ARS sofrem de pecado original.
Depois as ditas ARS foram-se transformando em autênticos gigantes da burocracia, alvos do clientelismo político, e que, administrando milhões, são hoje verdadeiras gestoras de “outsorcings”.
É curioso, falando na atual situação pandémica, e na melhor tradição judaico cristã da culpa, esta ou é atribuída à Ministra ou aos profissionais de fim de linha. No meio, o silêncio.
A tão desejada “chuva” de euros não irá reforçar o SNS se não for acompanhada da reestruturação prevista na actual Lei de Bases da Saúde.
Torna-se, pois, urgente a publicação dum Estatuto do SNS que dê funcionalidade à acima referida Base 9, com a criação dos Sistemas Locais de Saúde, monitorizados, autonomizados e responsabilizados, aproximando também a gestão do SNS das populações a que se dirige.
Esta urgência é tão premente exactamente por estarmos na actual situação de Saúde Pública e não pode ficar para as calendas porque corresponderá a uma mais adequada e melhor resposta.
E muita atenção! Se não for publicada legislação regulamentar ainda vamos ver argumentação como a de um Sr. Juiz do Tribunal Constitucional que, votando vencido no Acórdão nº 39/84, argumentava:
“(…) 3- O legislador interveio, editando a Lei nº56/79, com a qual visou criar um serviço nacional de saúde. Esse serviço, porém, não chegou nunca a ser montado, pois os decretos-leis de desenvolvimento necessários à implementação daquela lei não vieram a ser publicados.
Significa isto que, em direitas contas, nunca chegou a existir qualquer serviço nacional de saúde.
Por isso, não se pode dizer que, com a emissão do artigo 17º do Decreto-Lei nº 254/82, o legislador tenha vindo a extinguir ou abolir um serviço nacional de saúde que antes criara: não pode extinguir-se o que apenas existiu no papel (na letra da lei), o que nunca chegou a funcionar, por nunca ter sido, sequer, montado. (…)
Não deixemos que a atual Lei de Bases exista apenas no papel.
Reforcemos o Serviço Nacional de Saúde, adaptando-o à nova Lei de Bases. E depois podem vir os milhões …