Elísio Estanque: “Faz falta uma luta sindical transnacional”

 Elísio Estanque: “Faz falta uma luta sindical transnacional”

Elísio Estanque.

“A solidariedade e o internacionalismo, bandeiras fortes do movimento operário do século XIX, devem também ser reerguidas à luz dos novos problemas e formas de opressão típicas do século XXI”. Por outro lado, “num contexto de acelerada digitalização, fluidez, trabalho à distância, enfim desmantelamento dos regimes produtivos onde a revolução tecnológica joga um papel importante, os sindicatos ou se reinventam profundamente ou desaparecem”. Nada mal, para princípio de conversa. Sociólogo, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do CES, Elísio Estanque é um reconhecido especialista em matéria de políticas sociais, relações de trabalho e sindicalismo. Portanto, não se espere dele aquilo que ele não vai dar nunca: palavras simpáticas de circunstância, ideias a meia haste. O seu pensamento está claramente de um dos lados da barricada, porque no mundo das relações laborais, direitos dos trabalhadores, emprego, desigualdades sociais e precariedade não há falinhas mansas e muito menos atitudes neutras.

Como olhar e o que fazer, então, em tempos de nova escassez de trabalho — ou de subida do desemprego e da precariedade? Há uma pandemia que veio expor fragilidades antigas e relações de trabalho que impelem a que se discuta e reflita sobre o papel dos sindicatos, hoje. Mais do que nunca, porque o cenário em que estamos é complexo, dirá daqui a pouco Elísio Estanque, ao sublinhar que “nos últimos vinte anos, novas modalidades de protesto e novos movimentos sociolaborais emergiram sob novos dinamismos e formas de organização onde as redes sociais e o “ciberativismo” assumiram um crescente protagonismo”. Também porque as circunstâncias mudaram entende que “só uma profunda reinvenção e alteração de processos pode preservar o sindicalismo”. Contudo, não deixa de assumir frontalmente que “hoje, na União Europeia, faz falta uma luta sindical transnacional, por exemplo por um salário mínimo europeu ou em torno de nova legislação para proteger o teletrabalho e regular as “Work platforms”.  Vamos lá então perceber em detalhe todas as suas ideias.

sinalAberto — Como interpretar que haja, em 2021, em Portugal, startups a oferecer salários de 250 euros mensais? Elísio Estanque — A precariedade no emprego já se vinha ampliando em Portugal nas últimas décadas. Com a crise financeira de 2009-2013 acentuou-se ainda mais, tal como o desemprego e a pobreza. As chamadas “startups” surgem num contexto de euforia com as novas tecnologias da informação e onde o discurso do “empreendorismo” alcançou o seu apogeu. Como os novos empreendedores (ou os precários assim designados) atingiram o mercado de emprego nesse quadro de crise; como a mentalidade dominante entre as camadas mais jovens e qualificadas que alimenta as “startups” de base tecnológica partilham subjetividades e valores sobretudo individualistas e sem consciência dos seus direitos sociais/ deveres de cidadania; as condições para contrariar essa tendência de mercado (a redução aos mínimos dos custos salariais); em suma, todo este conjunto de fatores favorece a aceitação sem resistência de salários de miséria e condições de trabalho muitas vezes deploráveis.

SA — As desigualdades salariais/sociais e a precariedade têm vindo a aumentar, em Portugal, nos últimos anos?

EE — Sim, se considerarmos as desigualdades na base das distâncias sociais entre os salários mais baixos e os mais elevados temos que as camadas mais baixas dos trabalhadores portugueses são das mais proletarizadas da Europa enquanto os “CEOs” portugueses estão praticamente ao nível dos das grandes empresas internacionais. A precariedade intensificou-se em Portugal desde a primeira fase em que os recibos verdes abriram caminho a múltiplas situações de abuso exploração dos trabalhadores. Os chamados falsos recibos verdes em que milhares de trabalhadores ditos “independentes” eram na verdade dependentes de uma única entidade patronal que os mantinha na situação de subemprego à margem da lei. Entretanto, apesar de alguma evolução legislativa de combate a essas situações (sobretudo após o período da troika e o fim do governo de Passos Coelho), as novas leis laborais não deixaram de facilitar a flexibilização e fragilizar a contratação coletiva, reduzindo assim a segurança no emprego e os direitos dos trabalhadores. Estes e outros indicadores do campo laboral refletem-se também no aumento das assimetrias e desigualdades no que se refere à distribuição da riqueza. O índice de Gini, que tinha revelado uma ligeira redução das desigualdades na primeira década deste século, voltou a inverter-se a partir da crise económica de 2009. E nos últimos tempos, no contexto da pandemia, os sinais são ainda mais preocupantes a esse nível, dado que as condições sociais e os níveis de risco a que as diferentes classes sociais são expostas expõem ainda mais as desigualdades entre os grupos mais protegidos e os segmentos pobres e subalternos. Inclusive assiste-se de novo a uma tendência de empobrecimento de alguns segmentos da classe média.

SA — A clara fragilidade do movimento sindical é uma das consequências das crescentes incertezas e fragilidades das condições contratuais de trabalho? É possível inverter esta tendência?

EE — Sem dúvida que as transformações recentes na economia e no campo do trabalho estarão entre as forças que mais contribuem para a fragilização do movimento sindical no mundo inteiro. A globalização neoliberal iniciou uma viragem drástica nesse sentido e as crises mais recentes puseram ainda mais a nu as dificuldades do sindicalismo. A contratação coletiva caiu drasticamente e a multiplicação de novas situações de informalidade, subemprego, digitalização, fragmentação de processos, trabalho à distância, “uberização”, etc., etc., além de revelarem uma imensa e rápida metamorfose das formas de trabalho, multiplicaram até à exaustão os vínculos precários e a servidão (voluntária) a que os trabalhadores se sujeitam. Ao mesmo tempo, o sindicalismo institucionalizou-se, tornou-se crescentemente burocrático e corporativo. Nos últimos vinte anos, novas modalidades de protesto e novos movimentos sociolaborais emergiram sob novos dinamismos e formas de organização onde as redes sociais e o “ciberativismo” assumiram um crescente protagonismo. Mas nota-se também um vazio de valores e de ideologia o que abre caminho ao oportunismo e facilmente conduz a derivas populistas. Por sua vez, o problema dos sindicatos mais convencionais deve-se também a que, o prestígio e representatividade histórica que angariaram junto da força de trabalho conduziram ao desenvolvimento de uma cultura autocentrada – nalguns casos abrindo espaço às oligarquias ou sendo instrumentalizados por elas – que os impediu de se reinventarem e abrirem à sociedade. Em Portugal, quando no período da Troika se ofereceram possibilidades reais de aproximação entre o movimento sindical e outros movimentos sociais inorgânicos, o que se verificou foi uma evidente clivagem entre esses dois campos, um com mais historial e representatividade junto dos assalariados e funcionários (os setores mais estáveis) e outro mais inorgânico, mais radicalizado, mas também mais difuso e imprevisível. Acresce que no nosso país, a par da redução do número de filiados, assistiu-se à multiplicação do número de sindicatos, muitos deles com escassa representatividade e outros – ditos “independentes” – guiados por interesses particularistas e valores sociais de natureza duvidosa. Inverter a tendência parece ser muito difícil num mundo em que os atores políticos convencionais e as instituições democráticas perdem credibilidade, e os sindicatos são parte desse mundo, desse sistema social organizado que hoje ameaça ruir. Embora a resiliência seja uma característica importante das sociedades humanas e das organizações, nos tempos atuais só uma profunda reinvenção e alteração de processos pode preservar o sindicalismo.

Elísio Estanque: “O sindicalismo institucionalizou-se, tornou-se crescentemente burocrático e corporativo”.

SA — Interpretando bem as suas palavras, está a dizer que o sindicalismo, como o conhecemos, tem os dias contados… Como é que ele pode ser reinventado?

EE — Como disse, as organizações têm capacidade de resistência a e os sindicatos são exemplo disso, quer pelo seu lastro histórico, quer pelo seu enquadramento institucional em países onde o diálogo social ainda conta. Mas os atuais sindicatos perderam o seu potencial mobilizador dos trabalhadores porque se acentuou o desfasamento entre uma linguagem e forma organizativa inspiradas na era industrial e do emprego permanente e as novas camadas de trabalhadores precários, sem vínculo estável e caracterizadas pela constante instabilidade e mutação nas relações laborais. Num contexto de acelerada digitalização, fluidez, trabalho à distância, enfim desmantelamento dos regimes produtivos onde a revolução tecnológica joga um papel importante, os sindicatos ou se reinventam profundamente ou desaparecem. Para se reinventarem teriam de ser capazes de, por um lado, procederem a balanços críticos da sua própria prática, estimular a reflexão interna onde além das habituais queixas, ainda que sejam denúncias justas – contra os mercados, o neoliberalismo e o poder dos grandes grupos económicos –, deveriam também fazer “mea culpa” quanto à sua própria impotência, o desgaste de velhas lideranças que se perpetuam demasiado tempo nos órgãos dirigentes, a rigidez e algum enquilozamento das suas estruturas. Por outro lado, reverter as novas ferramentas digitais de fatores de fragilização e desigualdade em potenciais instrumentos de denúncia, de comunicação e de mobilização dos assalariados, dos desempregados, dos sub-empregados, dos precários, dos novos proletários da era digital. E por último promover alianças com base na abertura e articulação com novos movimentos sociais progressistas, seja de âmbito nacional, seja sobretudo por exemplo entre estruturas e federações dos países europeus. A solidariedade e o internacionalismo, bandeiras fortes do movimento operário do século XIX, devem também ser reerguidas à luz dos novos problemas e formas de opressão típicas do século XXI.

SA — Colocando a pergunta de outra maneira: em que sentido o sindicalismo é ainda relevante aos olhos dos trabalhadores?

EE — Diversos estudos e inquéritos mostram que a maioria dos trabalhadores – incluindo os não-filiados – ainda reconhecem que os sindicatos são importantes e que “sem eles as condições de trabalho seriam piores”. Mas mais preocupante é quando constatamos que para as camadas mais jovens e mais qualificadas o universo sindical é algo distante das suas preocupações quotidianas ou mesmo matéria totalmente desconhecida. Como o sindicalismo está em recuo ou escuda-se sobretudo nos segmentos estáveis do emprego, os setores mais precários, desesperados para manter o posto de trabalho, sem vislumbrarem outra opção, tentam satisfazer as exigências dos empregadores, sabendo que filiar-se no sindicato significa com grande probabilidade a não renovação do contrato. O desemprego em alta continua a funcionar como o “exército de reserva”, duzentos anos depois de Marx. No fundo, para uma força de trabalho cada vez mais dispersa, fragmentada e instável, situação que rapidamente se generaliza, a utilidade dos sindicatos só é percebida em situações de desespero. Ou quando individualmente o trabalhador se sente prejudicado e perseguido, recorrendo então a apoio jurídico que lhe seja disponibilizado, ou quando perante movimentações coletivas que pretendam repor direitos agredidos face a uma flagrante injustiça percebida pela categoria profissional em causa. Em geral é sobretudo matéria salarial, horários ou de carreiras que está em causa nas movimentações grevistas (exemplos disso foram as greves dos estivadores, da Autoeuropa ou dos enfermeiros), quase sempre orientadas por interesses de natureza corporativista. Os velhos valores do internacionalismo e da solidariedade, que animaram o movimento operário do século XIX, praticamente desapareceram. Hoje, na União Europeia, faz falta uma luta sindical transnacional, por exemplo por um salário mínimo europeu ou em torno de nova legislação para proteger o teletrabalho e regular as “Work platforms”.

“Olhando para as novas camadas de trabalhadores qualificados, que estão a querer entrar no mercado de emprego, sabemos bem que a sua predisposição é subjetivamente orientada para a aceitação de condições precárias, ainda que porventura suportada pela ideia de que se trata de uma situação transitória”

SA — Mais grave ainda: a legislação laboral nestes anos de governação à esquerda não melhorou as condições contratuais dos trabalhadores: o número de precários aumentou, vários direitos laborais foram diminuídos, enfim, o contrário do que era suposto ter acontecido. Como explicar tudo isto?

EE — Sim, apesar dos avanços verificados com o governo da “geringonça” (em reposta a uma petição que deu entrada na AR e à pressão do Bloco de Esquerda e do PCP), tal não foi suficiente para contrabalançar a pressão resultante de um mercado de trabalho que se “reinventa” rendido às regras do mercantilismo selvagem e com a ajuda das novas ferramentas informáticas e comunicacionais. E como acabei de dizer também aqui o aumento do desemprego joga um papel fundamental. A revolução informática e comunicacional, num quadro de crise e estagnação salarial, deu um significativo empurrão. Isto tudo com a ajuda do discurso do “empreendedorismo”, a euforia em torno das “startups” e toda a panóplia de apelos ao consumismo, aspetos que tiveram um impressionante impacto, contribuindo para esta metamorfose do mundo laboral na qual a precariedade parece ser o seu traço mais persistente. Olhando em particular para as novas camadas de trabalhadores qualificados, que estão a querer entrar no mercado de emprego, sabemos bem que a sua predisposição é subjetivamente orientada para a aceitação de condições precárias, ainda que porventura suportada pela ideia de que se trata de uma situação transitória. Nos call centres, por exemplo, a intermediação das empresas de trabalho temporário permite a multiplicação de vínculos de muito curto prazo e com escassas obrigações para as entidades empregadoras, além de que, tal como na generalidade dos novos empregos, a pressão para a produtividade e o controle apertado sobre os assalariados estimulam um stress que facilmente atinge a exaustão – o chamado “burnout” – cujos efeitos na saúde e bem-estar dos trabalhadores são, como sabemos, devastadores. Empresas como a Uber, que em Portugal ocupa mais de 8 mil trabalhadores sem qualquer vínculo ou estabilidade, usam e abusam das plataformas digitais aproveitando-se das carências, da falta de alternativas da mão-de-obra imigrante, etc., uma realidade que só agora começa a merecer a atenção do legislador, mas ainda de forma incipiente. Em suma, ainda que tenha existido no último ciclo político uma nova sensibilidade e vontade política para corrigir o problema da precariedade, o certo é que, nessa equação de poderes assimétricos acaba por prevalecer a pressão competitiva e o princípio empresarial sobre o conceito de “trabalho digno”, não obstante os constantes alertas da OIT na denúncia dessas situações.

”Reverter as novas ferramentas digitais de fatores de fragilização e desigualdade em potenciais instrumentos de denúncia, de comunicação e de mobilização dos assalariados, dos desempregados, dos sub-empregados, dos precários, dos novos proletários da era digital”.

SA — Alguns empresários e governantes têm dito que as políticas continuadas de baixos salários, em Portugal, têm de acabar. A realidade, salvo raras exceções, demonstra o contrário. É uma fatalidade nossa vivermos nestas contradições?

EE — Há muito que se ouvem opiniões nesse sentido e – diga-se –, apesar de tudo, já houve algumas melhorias, por exemplo em setores como a indústria do calçado. Quando estudei esse setor, nos anos noventa, o trabalho infantil e o despotismo patronal eram comportamentos que se somavam aos salários miseráveis. É verdade que hoje os salários continuam praticamente estagnados, mas os ganhos de produtividade dessa e outras indústrias já dependem muito mais do conhecimento, do design e da inovação tecnológica do que há duas ou três décadas atrás.  Porém, a lógica da implosão salarial, do “dumping” social, tem sido uma tendência geral nas últimas décadas (diria, desde o Consenso de Washington), estimulada pela globalização e pelos interesses lucrativos do capitalismo financeiro; e no quadro de competitividade global em que vivemos nenhuma economia aberta pode escapar a essa lógica.

Para escapar a esse modelo seria (será!?…) necessário que ocorra uma profunda reformulação de políticas económicas, o que exige, para começar, no plano teórico, uma reabilitação da “economia política” e do velho modelo keynesiano, ainda que necessariamente adaptado a uma realidade distinta da de há um século atrás, ou perto disso. O Plano de Recuperação Económica que a União Europeia anunciou para ser implementado em breve pode, de facto, tornar-se uma oportunidade de reorientação da atividade produtiva onde o diálogo social e o direito do trabalho possam voltar a ocupar um papel central. Por outro lado, importa lembrar que uma tal inversão não ocorre apenas por decisão administrativa, já que a realidade laboral e social é repleta de interesses conflituais e os atores dessa possível contenda (governos, sindicatos, partidos políticos, empresários, etc.) eles próprios estão em processo de reconfiguração. No contexto europeu e num cenário de pós-pandemia, importará que nos países da UE se revitalize a indústria, que se revalorizem aspetos como a ligação indústria-território, o incentivo à construção de redes multi-atores que promovam formas de governança e participação, enfim, que se valorize mais a ciência, o conhecimento, o envolvimento das comunidades, dos municípios e das empresas em projetos de desenvolvimento capazes de repor maior dignidade às pessoas, aproveitando o papel do conhecimento, dos saberes práticos das gerações mais idosas de trabalhadores, promovendo dessa forma um envelhecimento ativo que ao mesmo tempo valorize e promova a cooperação intergeracional como potencial para o desenvolvimento da economia e da sociedade.

SA — O antigo presidente da CIP, Ferraz da Costa, afirmou há dias numa entrevista, que aumentar o salário mínimo nesta altura seria “uma ideia criminosa”. Quer comentar?

EE — Essa frase é bem ilustrativa de uma mentalidade passadista e onde a dita “sensibilidade” social dos empresários não passa de palavra vã. Os setores mais tradicionais da indústria veiculam ainda esta mentalidade, ou seja, o que conta é a obsessão pelo lucro rápido e fácil. É verdade que os pequenos empresários precisam de mais incentivos – em especial numa altura como a que atravessamos –, mas os incentivos têm de ser dirigidos para quem cumpre as suas obrigações (não só na fiscalidade mas também no respeito pelos direitos e pela dignificação dos trabalhadores), quem investe na formação, quem reconhece e estimula as capacidades dos seus “colaboradores” (como os empresários gostam de se referir aos assalariados). Acresce que o salário mínimo em Portugal permanece num nível extremamente baixo e com a atual crise económica o consumo e o investimento caem abruptamente, pois as famílias procuram resguardar-se, acentuando assim o bloqueio da economia. Esperemos que o programa de recuperação europeu e o OE para 2021, agora em discussão no Parlamento, não descurem esta matéria. De outro modo, os índices de pobreza irão voltar a disparar. Por outro lado, as empresas com sentido estratégico só têm a ganhar pondo em prática retribuições e incentivos que motivem a dedicação da força de trabalho.  

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João Figueira

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