Elza Soares (1930-2022): Voz do Planeta Fome calou-se há um ano

A cantora Elza Soares morreu a 20 de Janeiro de 2022, no Rio de Janeiro, aos 91 anos. (Créditos fotográficos: BBC News Brasil)
A voz de Elza Soares, a cantora que veio do Planeta Fome, calou-se há um ano. A 20 de Janeiro de 2022. Tinha 91 anos e cantou até ao fim. Como sempre quis. Elza Soares, que recebeu o nome de Elza Gomes da Conceição na pia baptismal, foi a voz da comunidade negra, dos direitos das mulheres e das minorias, dos sem-tecto e dos sem futuro: de todos aqueles cujas vidas só valem no livro de registos da morte.

A caminhada de Elza Soares foi longa e dura. Carregou latas de água para a mãe, lavadeira em Bangu, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro; varreu chão, foi doméstica e operária. Aos 12 anos, deu à luz o primeiro dos seus oitos filhos, fruto de uma relação com um amigo do seu pai. Por essa altura, Elza, que nascera na então favela carioca de Moça Bonita (actual Vila Vintém), no bairro de Padre Miguel, foi vítima de violência doméstica e sexual e viu morrer dois filhos com fome. Perderá mais dois filhos, ao longo da vida: Garrinchinha (em 1986) e Gilson (em 2015).

Elza ficou viúva aos 21 anos e viu também uma filha ser raptada. Filha que só reencontrou 30 anos depois. Mas, apesar das perdas e da luta diária pela sobrevivência, não desistiu do seu sonho: fazer ouvir a sua voz. Em meados de 1953, inscreveu-se no programa radiofónico “Calouros em Desfile” e a sua vida começou a mudar.

Mesmo que tenha sido vexada inicialmente por Ary Barroso (1903-1964) e pelo público, que a recebeu com gargalhadas, quando a topou com um vestido da “mãe, aproximadamente vinte quilos mais gorda, ajustado com vários alfinetes de fralda e um penteado de maria-chiquinha” (1). O compositor popular, que apresentava o programa, tentou mesmo ridicularizar Elza perguntando-lhe: “De que planeta você veio, minha filha?” Elza não se intimidou e respondeu de pronto: “Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome.”
Depois, Elza cantou “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves. O público aplaudiu em delírio e Ary proclamou: “Acaba de nascer uma estrela!” Assim foi. Prova-o a sua longa e consistente carreira e a sua obra discográfica. Um percurso de excelência que Chico Buarque elogiou e a BBC, de Londres, consagrou, em 1999, quando a tornou “Cantora do Milénio”.
A cantora de voz rouca, capaz de interpretar sambas, blues e funk, atingiu a condição de deusa. Tornou-se, com Billie Holiday, alvo de teses académicas, pois são ambas negras, intempestivas, predominantemente afectivas, alegres e tristes, sendo capazes de provocar fissuras nos discursos politicamente correctos. Isto é, Elza nunca se deixou levar pela fama nem cantou canções para embalar totós. Fez o caminho das pedras, mesmo que tenha admitido sair de cena nos anos 60 do século passado. (Valeu-lhe, então, a mão cúmplice de Caetano Veloso, que gravou com ela “Língua”, em São Paulo.)

(Créditos fotográficos: Reprodução / Terra – g1.globo.com)
Elza regressou ao Rio de Janeiro e manteve-se fiel à sua condição de artista que veio do “Planeta Fome”. Negra e favelada, que valorizou as palavras dignidade e liberdade. E que, por assim ser, viu a sua casa ser alvo da metralha assassina da ditadura militar.
Deixou, então, o seu Brasil por seis anos. Auto-exilou-se em Itália. Em Roma, teve a seu lado os seus filhos e Mané Garrincha, o “génio das pernas tortas” e a “alegria do povo”. Garrincha foi o seu maior amor e aquele que lhe causou mais dor. Campeão do Mundo em 1962, morreu aos 49 anos, vitimado por cirrose hepática.
Elza cantou até ao fim. Mesmo que, a partir dos 90 anos, o tenha feito sentada, por força de uma grave lesão na clavícula. “Eu não tô dopada, não tô adormecida, tô muito acordada”, disse à revista GC Brasil, em Setembro de 2019. E acrescentou: “Planeta Fome é um alerta para o povo.”
Elza Soares sabia que o Brasil “tá num momento muito ruim”. Apesar de manter viva a sua voz singularmente rouca, a modos que “uma mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz”, a favor dos mais frágeis, não deixou de clamar: “As pessoas precisam acordar, ninguém tá fazendo nada. Alguém precisa de fazer isso, então faço eu mesmo.”

E assim aconteceu de facto. Provam-no os trabalhos discográficos “Do Cóssix Até ao Pescoço” (editado em 2002), “Carne” (“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, realça a letra da canção); “A Mulher do Fim do Mundo” (2015), “Deus é Mulher” (2018) e “Planeta Fome” (2019).

Elza não desarmou. Deu luta sem tréguas ao preconceito, ao racismo, aumentou o volume da crítica e o tom feminista. Não perdeu de mira o ignorante às ordens dos saudosos da ditadura militar e da censura. Também dos que não gostavam dela e mandaram matar Marielle Franco (*).
Agora, que estamos prestes a assinalar um ano da tua partida, venho aqui dizer: – Obrigado, senhora Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul! A sua longa vida foi um exemplo.

Fontes consultadas:
Declarações de Elza Soares ao jornalista Pedro Bial e à revista GQ Brasil.
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Nota da Redacção:
(*) O assassinato de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), foi um crime executado no dia 14 de Março de 2018, no Estácio, região central da cidade.
12/01/2023