Em casa: entrar sem ser Covidado

 Em casa: entrar sem ser Covidado

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, Martin Heidegger, comentando o admirável poema de Hölderlin, “Poeticamente o homem habita”, colocou a questão radical: “o que é o habitar?”. Faz-nos concluir que, na sua essência, o habitar é poético, é um impulso fundamental da condição humana, não é só uma necessidade física nem corresponde a uma função determinada. Na mesma altura, Gaston Bachelard evocava, para efeitos muito semelhantes, o universo concentracionário dos velhos círculos patriarcais e a necessidade absoluta que cada um de nós tem de neles encontrar o espaço de intimidade, de encontro consigo mesmo. No fundo, acho que todos nós sabemos do que falava Bachelard. Estas reflexões serviram — e muito — para questionarmos as dicotomias e os desequilíbrios entre espaços de intimidade e espaços de sociabilidade, serviram também para que passássemos gradualmente a encarar a habitação como objecto de apropriação poética e não como uma funcionalidade estatística, estéril e desumana.

Mesmo na habitação pré-industrial, em que a função da casa pode ser essencialmente laboral, há um espaço de maior intimidade, um reduto que também serve para descansar, normalmente uma sobreloja — nas tabernæ das urbes romanas; nos pontos de venda dos souks; nas oficinas dos artesãos das cidades europeias do Século XV; nos lofts dos espaços comerciais urbanos e em tantos outros —, por mínimo que seja, todos temos direito a esse espaço de recolhimento e reflexão onde ninguém entra sem ser convidado. Mas esse espaço foi evoluindo, foi-se concentrando também na sua essência antropológica e foi revelando a sua função regeneradora e potenciadora da nossa relação com a exposição pública.

Foi precisamente quando estávamos a começar a processar esse equilíbrio que chegou, paulatinamente, a difusão comunicacional em rede. Veio condicionar-nos essa intimidade, passámos a levar o mundo, com todas as suas maravilhas e com todos os seus horrores, para a sala de estar, para a mesa de cabeceira, para a sanita e sei lá mais para onde. Mas mais, passámos e estar ligados, em permanência, a uma realidade na qual o espaço, e a sua relação com o tempo, deixaram de ter sentido. Antes, a intimidade da casa suprimia o tempo como instituição pública — o tempo dos relógios, como lhe chamava Lefebvre — agora a falta de intimidade da casa suprimiu-nos também o direito à noção de espaço real. O zoom dos mapas nas aplicações de navegação desloca-se à velocidade de propagação do vírus, nunca conseguimos perceber a total dimensão do mapa. Morreu o mapa com a dimensão do território, de Borges. Da China ao Alasca são as mesmas fracções de segundo que da Líbia à Colômbia. Não há nada no meio.

Por outro lado, não desligamos nunca, acabou o tempo de desligar, não saímos de baixo do joelho do polícia de Mineapolis, podemos passar o resto da vida a asfixiar. É virtual?!!

Servem estas linhas para vos falar da minha experiência de teletrabalho. Logo que me levanto, começo imediatamente a pensar na cara, ou nas caras que me vão aparecer no monitor, mas isso é o menos. No tele-trabalho, há quem nos entre em casa para ditar as suas regras, inventadas durante uma insónia precisamente naquele que, em tempos, fora também o seu espaço de intimidade, há quem nos envie tutoriais a ensinar comportamentos, técnicas, aptidões, como se fosse tudo a mesma coisa. Há quem esteja incessantemente a inventar modelos de procedimento. Mas como não há qualquer espécie de princípios de compensação social associados a esses procedimentos, estão sempre a ser revistos e por vezes anulados. O que de manhã é uma regra, à tarde pode ser desaconselhado, ou mesmo proibido. O que parece ser bom para todos, afinal é uma perversão horrível para o outro, deixou de haver bom senso.

Mas o pior, o pior mesmo, são os profetas — os profetas do profit — são aqueles tele-tecnólatras, neo-futuristas requentados pela ignorância histórica, são aqueles que proclamam:

 “— Daqui para a frente, tudo vai mudar! Vamos passar a vigiar microscopicamente quem não cumpre, observar se trabalha ou não. Mas mais, acabaram as despesas de viagem para as empresas, não temos de pagar a energia gasta com as obsoletas instalações do mundo real, cada um que se amanhe a partir de casa, podemos mesmo despedir centenas, milhares de inúteis que trabalham na logística, na produção material das coisas, na dança, na prevenção de doenças contagiosas, no desporto, na cultura, isso são coisas do passado material. O Covid 19 é a higiene do Mundo! O Colibri-Zoom é mais bonito que a Vitória de Samotrácia!”

Há os que nos entraram em casa por absoluta necessidade de resposta ao recolhimento, dada a pandemia de Covid 19, mas o pior são os que nos entram em casa sem ser covidados.

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José António Bandeirinha

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