Ensaio sobre a cegueira

 Ensaio sobre a cegueira

Sara Winter

Há poucas semanas, o Brasil acordou com a notícia de que uma youtuber bolsonarista fora presa pela Polícia Federal. Líder do grupo de extrema-direita “Os 300 do Brasil”, Sara Winter está na mira de uma investigação que apura a disseminação de notícias falsas e discursos de ódio nas redes. O curioso é que o nome da moça, de 28 anos, é outro – um pouco mais brasileiro e menos simbólico: Sara Fernanda Giromini. O pseudônimo Sara Winter – como gosta de ser chamada – é uma alusão a uma socialite dos anos 20 e 30 do século passado, Sarah Winter (1870-1944) –, apoiante do nazismo e membro da União Britânica de Fascistas. O mais trágico nesta história é a simbologia adotada pelos radicais que apoiam o presidente da república, chefe da malta. Tudo às claras e feito no momento em que o Brasil amarga a vexatória posição de segundo país do mundo no número de mortes por coronavírus. Ultrapassamos a marca de 60 mil óbitos em menos de quatro meses. Mesmo assim, os radicais seguem – animados pela figura de Bolsonaro – na tentativa de “exterminar os inimigos comunistas” e capitanear-se como baluartes da extrema-direita que, até há pouco, chafurdava na lama.

O espaço das redes, só aparentemente desprovido de mediações, é, na verdade, a extensão de um processo de desestabilização democrática que o Brasil viveu nos últimos anos

Sara Winter.

Antes de virar uma fanática bolsonarista, Sara Giromini se identificava como feminista. Passou um período na Ucrânia e tornou-se uma das fundadoras da variante brasileira do grupo Femen, criado no país do leste europeu em 2008, com o objetivo de protestar contra a violência de gênero, a homofobia, o racismo, o turismo sexual e outras formas de opressão. Depois, passou a atuar num grupo próprio, Bastardxs. Já chegou a performar a castração de um boneco com a cara do então deputado federal Jair Bolsonaro. Queria cortar o mal pela raiz. Hoje, defende o presidente com unhas, dentes e arma na mão. O que terá levado Giromini a mudar de posição tão radicalmente talvez seja matéria para um bom psicanalista. O que me interessa aqui é a simbologia que o discurso dessas personagens introduz na cena pública brasileira.

Antes de ser presa, Sara Giromini afirmou, nas redes sociais, que transformaria “num inferno” a vida do juiz que comanda as investigações contra ela no Supremo. Chamou o magistrado de “arrombado” e ameaçou descobrir os contatos dos que trabalham na casa do juiz. Dias antes da prisão, ela liderou um grupo de extremistas que caminhou pela Praça dos Três Poderes, com máscaras e tochas nas mãos, em direção à sede da Suprema Corte. Uma emulação dos agentes da Ku Klux Klan – o grupo extremista norte-americano. Mas a gota d’água foi a noite em que os mesmos fanáticos resolveram disparar fogos de artifício contra a sede do Supremo, simbolizando um ataque à instituição com armas de guerra. Só aí é que a Justiça resolveu agir de forma mais enérgica, além das enfadonhas notas oficiais – que agora viraram postagens nas redes sociais –  a exemplo do que fazem os presidentes da Câmara e do Senado contra as investidas autoritárias de Jair Bolsonaro.

Chamas da Liberdade, Grupo pró bolsonarista chamando de 300 do Brasil, realizam protesto em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal) contra Ministro Alexandre de Moraes, na cidade de Brasília, DF, neste sábado, 30. 30/05/2020 – Foto: WALLACE MARTINS/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

De fato, a prisão temporária de Sara Giromini – que, entretanto, já está solta, mas obrigada a usar tornozeleira eletrônica e impedida de aproximar-se do prédio do Supremo – soou como um recado às hostes bolsonaristas mais radicais. Apesar disso, é assustador que figuras como essas consigam ir tão longe em seus ataques às instituições da república e que seja tão difícil neutralizá-las. O que explica o fenômeno? Não pode ser apenas a força dos media sociais a explicar a notoriedade dessa gente e dos discursos que vertem ódio político e sangue.  O espaço das redes, só aparentemente desprovido de mediações, é, na verdade, a extensão de um processo de desestabilização democrática que o Brasil viveu nos últimos anos.

O papel dos media na preparação do terreno para Bolsonaro se organizou em torno de discursos de realce e silenciamentos

Ao menos desde as Jornadas de Junho de 2013 – quando ecoavam, nas ruas e nas redes, gritos de que “o gigante acordou” – o Brasil iniciou o caminho do caos. Ao contrário do que diziam, o resultado daqueles dias de agitação seria a entrada do país num transe coletivo absoluto. Um país quase inteiro levado à cegueira política, com o apoio de setores que agora sofrem os efeitos da horda bolsonarista, mas fundamentais na configuração do clima de opinião que nos traria até o governo de Jair Bolsonaro. Muitos participaram do processo, das elites empresariais às próprias instituições da república – dos arroubos autoritários do Ministério Público na Lava Jato ao uso político da magistratura por juízes como Sérgio Moro. Sem esquecer o Congresso Nacional, que derrubou uma presidente eleita sem a devida comprovação de crime, e adversários da classe política tradicional que contestaram o resultado eleitoral de 2014. Todos esses elementos se cruzam no emaranhado contextual para explicar o Brasil de hoje, em que Saras Girominis vão sendo cada dia mais comuns.

O que pode parecer mero jogo de palavras entre dizer e silenciar é a mais pura expressão da ação política dos discursos

Mas ocorre-me referir, um pouco melhor, o papel de outro setor: os meios de comunicação hegemônicos. Como atores políticos que sempre foram na história brasileira, eles estiveram presentes – dando o seu contributo – em todos esses eventos e são parte central na explicação do fenômeno político que hoje também os agride. A contar pela forma como trata os jornalistas, Bolsonaro parece ser incapaz de perceber como os meios de comunicação foram importantes na sua eleição. Ou talvez perceba muito bem, e a postura beligerante seja mesmo parte de sua estratégia de comunicação política.

Sara Winter

O papel dos media na preparação do terreno para Bolsonaro se organizou em torno de discursos de realce e silenciamentos. A generalidade dos grandes veículos foi incapaz de ajuizar criticamente as violências da Operação Lava-Jato contra a lei penal e a Constituição. Estavam entregues aos encantos da operação da “República de Curitiba”, que fornecia cenas diárias de prisões e quedas de figuras políticas de vulto. Uma novela sem fim. Foi preciso que Gleen Greenwald – que já havia elogiado a Lava Jato – trouxesse a público mensagens que revelavam o conluio entre juiz e procuradores. Nos media nacionais, quase ninguém ousou questionar procedimentos claramente abusivos das autoridades. Silêncio eloquente.

Discurso é mais passado que presente. E o presente do Brasil – com Bolsonaros e Saras Girominis – só se explica por aquilo que se disse antes sobre a política

Nas eleições de 2018, os grandes jornais tomaram a decisão de estabelecer paralelo entre Bolsonaro e Fernando Haddad. “São faces da mesma moeda”, “dois extremos”, diziam os editorialistas. Enquanto isso, os jornais internacionais diziam o óbvio: não há comparação possível entre ambos. Bolsonaro, afirmavam os estrangeiros, é extremista, homofóbico, racista… Por aqui, só muito recentemente, alguns veículos passaram a usar o termo “extrema-direita” para designar o presidente. Realces e silêncios coniventes.

Voltei à consciência de que um discurso não se explica pelo ponto de chegada, materializado no texto diante dos olhos

O que pode parecer mero jogo de palavras entre dizer e silenciar é a mais pura expressão da ação política dos discursos. Nomear é a principal forma de conferir sentido e forma às coisas, ensina boa parte dos estudiosos da linguagem. O mesmo acontece com os fenômenos políticos. No dia da prisão de Giromini, a Globo parece ter sido invadida pelo espírito de um daqueles teóricos da linguagem que costumam dar as caras nos cursos de jornalismo. Iniciou o dia referindo-se à extremista como “ativista” e “militante”. Chamava-a pelo nome de guerra – Sara Winter. Pouco depois, mudou o tom. O que era ativismo passou a ser “extremismo” e o pseudônimo deixou de ser usado pelos repórteres. Em muitos outros veículos, todavia, a moça continua a ser tratada com termos que mascaram a realidade e naturalizam as atrocidades implicadas nos valores que ela representa.

“Nunca é tarde” – disse-me outro dia um amigo, em referência à reação da Justiça aos ataques criminosos de Sara Giromini. Pensei em dizer o mesmo sobre a mudança de tom da TV Globo. Mas logo voltei à consciência de que um discurso não se explica pelo ponto de chegada, materializado no texto diante dos olhos. Discurso é processo, caminho… Às vezes, pode apontar para rumos diferentes. Mas as pisadas deixadas para trás trazem o analista ao prumo. Discurso é mais passado que presente. E o presente do Brasil – com Bolsonaros e Saras Girominis – só se explica por aquilo que se disse antes sobre a política. E pelo que foi silenciado. Bolsonaro e sua trupe fascistoide são cria do discurso antipolítica e antipetista de gente que – como a Globo – parece querer chamar agora as coisas pelos nomes certos. Talvez seja tarde. 

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Bruno Araújo

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