Entre uma e outra Lei de Bases de Saúde

 Entre uma e outra Lei de Bases de Saúde

National Cancer Institute

Entre 1 de Junho de 2017 e 18 de Julho de 2019, assistiu-se em Portugal ao maior e mais esclarecido debate público sobre política de saúde. Foram mais de dois anos de reuniões, colóquios, conferências, intervenções em todos os meios de comunicação social, um vasto leque de artigos de opinião e tomadas de posição dos partidos políticos, de vários governantes e de personalidades ligadas ao sector. Não tanto sobre aspectos particulares, mas principalmente o que futuramente havia de ser a relação entre saúde e medicina, o nacional e o local, o público e o privado, o dinheiro que há e o dinheiro que falta, os profissionais e as organizaçõe.

Passaram-se em revista todos os assuntos que antes esperavam a sua vez para serem discutidos. Tratou-se de lançar uma ampla discussão sobre política de saúde tendo como argumento a revisão de Lei de Bases da Saúde de 1990. A qual serviu de mote para esse fim. Para o efeito, para materializar todo esse vasto conjunto de contribuições e opções, nada melhor do que fazer-se essa discussão tendo como referência a construção de uma nova Lei de Bases da Saúde, o ponto de partida e as fronteiras a partir das quais os governos ficariam obrigados a fazer as suas escolhas. Porque se há matéria em que a previsibilidade deva estar presente, essa é a política de saúde, e é para isso que uma Lei de Bases da Saúde deve servir. Neste período de tempo assistiu-se também ao alinhamento das forças políticas e sociais, com uma terra de ninguém povoada por escassos defensores da conciliação das soluções, com um pé dentro e outro fora, arautos de uma síntese impossível. E esse alinhamento fez-se em torno de duas visões bem distintas: a direita do espectro política continuou a rever-se numa Lei de Bases da Saúde com vista para o mercado, a esquerda investiu, por sua vez, numa Lei de Bases com vista para o Serviço Nacional de Saúde. Essa foi a linha divisória entre os dois campos: ao público o que é público, ao privado o que é privado. Os encontros, a darem-se, ocorreriam sempre que as circunstâncias o exigissem.

De um lado estiveram os defensores da diluição do SNS num sistema de saúde, com os sectores público e privado em concorrência um com o outro, do outro lado, os que sempre fizeram uma leitura constitucional da política de saúde e do instrumento que garantia a sua aplicação. Mas o debate serviu igualmente, e não menos importante, para colocar na agenda da política de saúde, aspectos que até então tinham ficado na sombra, dada a relevância e prioridade que sempre foi dada à medicina. A promoção da saúde, a prevenção da doença, a saúde pública e a saúde em todas as políticas tiveram uma presença no debate público como antes nunca tinham tido. De tal maneira que em tudo o que ia sendo dito ninguém escapava a fazer referência àquelas dimensões da política de saúde. Mas também à infraestrutura que localmente está em melhores condições de a materializar e operacionalizar, os Sistemas Locais de Saúde. Sendo que esse dispositivo organizacional inovador poderá vir a ser a peça que faltava ao SNS para se tornar mais robusto naquilo que diz respeito à acessibilidade, à participação cívica, à sua gestão e regulação externa. Contudo, a revisão da política de saúde não ficou concluída com a aprovação da Lei de Bases da Saúde. Seguiu-se a discussão do Estatuto do SNS, o qual há-de materializar o modelo de organização mais apta para responder aos velhos e novos desafios, as suas funções, competências e atribuições. E entre elas haverá que equacionar o seu âmbito e limites, sobretudo se a lógica da política de saúde não se quiser ficar pela biomedicina, que sendo necessária, não é suficiente. Terá então de se equacionar a entrada de outros actores sociais dentro do tradicional perímetro do SNS. E entre eles hão-de estar também as escolas, as autarquias e a segurança social, entre outros, cada um investindo com os seus saberes, conhecimentos e recursos, mas todos contribuindo para o mesmo fim, a saúde da comunidade local.

Sendo um estatuto um conjunto de regras para serem obedecidas, as regras que vierem a ser estabelecidas no Estatuto do SNS levarão em conta, desejavelmente, os pressupostos que tornam este sector único: todo o ciclo de vida da pessoa, a multicausalidade da saúde e da doença, a sua relação com as comunidades de pertença, o seu percurso social e a história de vida. De maneira a prevenir manifestações claustrofóbicas do sistema, a sua configuração decorrerá da melhor combinação que se fizer entre o local e o nacional, considerando que será dessa diferenciação que se conseguirá captar o que é particular para obter as melhores respostas, mas também as melhores soluções e resultados. Tratando-se de incluir a melhor evidência sobre cada solução organizativa, importa que sejam as comunidades os sujeitos da acção, as quais são depositárias de saberes e conhecimentos insubstituíveis. São elas as principais reguladoras do que se fez e do que havia de ser feito, das alternativas em presença e dos caminhos para as alcançar. Tomando para si o que antes era exclusivo de outras instâncias, a comunidade adquire o papel que lhe tem sido negado, o de construtora de novas realidades sociais. Mas também geradora de bens colectivos, resultantes de medidas dispersas. Reconstruir, sem que o edifício venha abaixo, consegue-se desde que o envolvimento seja de todos.

O esquadro e o compasso, sendo bons instrumentos para marear e arquitectar, para o caso podem transformar-se em adversários temíveis, a evitar, uma vez que só servem para traçar rectas e curvas, e estas, por sua vez, são figuras pouco prestáveis quando se trata de relações sociais. Quem foi apanhado desprevenido, principalmente os que ambicionavam prosperar mantendo-se à sombra da lei de 1990, hão-de querer regressar a ela pela porta do Estatuto do SNS. Trata-se de fazer escolhas, e todas as escolhas políticas têm uma base ideológica. E o que se passou ao longo dos meses em que se discutiu esta matéria é exemplo disso. De um lado quem entendia que a Lei de Bases da Saúde havia de servir um projecto de SNS mais habilitado a servir a solidariedade entre todos, do outro, quem se queria servir da Lei de Bases da Saúde para fazer prosperar os seus negócios. E quem esteve na defesa da predominância do serviço público de saúde entendeu, considerando o histórico de quarenta anos, que esse representava a melhor evidência para o continuar a defender. Política e ideologia são fenómenos inseparáveis. Quem os pretende diferenciar, ou anular, tem o propósito de tornar as sociedades cegas, surdas e mudas. Ora não tinha sido para isso que os acordos de Novembro de 2015 haviam de servir, para anular o que não tinha ficado escrito. A sua aura visava que se tomasse partido em tudo e por tudo, e tomar partido representa a tomada de consciência política e agir sobre o  que em cada momento está em causa. Quando é que os partidos da direita descobriram e passaram a defender a existência do SNS? Precisamente no dia 24 de Agosto de 1990, quando foi publicada a Lei de Bases da Saúde. Sobretudo porque ficaram inscritas as disposições reivindicadas pelos empresários do sector, nomeadamente: O Ministério da Saúde e as administrações regionais de saúde podem contratar com entidades privadas a prestação de cuidados de saúde aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde sempre que tal se afigure vantajoso, nomeadamente face à consideração do binómio qualidade-custos, e desde que esteja garantido o direito de acesso (Base XII) ; Nos termos a estabelecer em lei, pode ser autorizada a entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do Serviço Nacional de saúde a outras entidades ou, em regime de convenção, a grupos de médico (Base XXXVI) ; O Estado apoia o desenvolvimento do sector privado de prestação de cuidados de saúde, em função das vantagens sociais decorrentes das iniciativas em causa e em concorrência com o sector público (Base XXXVII); O apoio pode traduzir-se, nomeadamente, na facilitação da mobilidade do pessoal do Serviço Nacional de saúde que deseje trabalhar no sector privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas e na reserva de quotas de leitos de internamento em cada região de saúde (Base XXXVII). Foram estas condições que convenceram a direita a incorporar na sua retórica 145 os benefícios do SNS. Continuaram a ser estas as exigências para a aproximação de pontos de vista da direita à proposta do PS. Sumariamente, foi este o caderno de encargos que o grupo ad-hoc Pela nossa saúde, pelo SNS, se propôs cumprir quando decidiu marcar presença e abrir a discussão sobre o tema. O princípio que esteve sempre presenta na sua acção foi o de cada um segundo as suas possibilidades, porque as necessidades diziam unicamente respeito à melhoria do estado de saúde dos portugueses. Esse foi sempre o único propósito. O grupo teve consciência de que durante bastante tempo foi objecto de observação por parte dos vários actores políticos, institucionais e outros.

Era um processo que tinha tido o seu início fora dos vários perímetros de influência, os quais demoraram algum tempo a reagir às suas iniciativas e a adaptar-se a uma agenda que não fazia parte dos seus roteiros políticos. Foi uma espécie de blitzkrieg que apanhou desprevenido quem se preparava para fazer dos próximos quatro anos um passeio orlado das mais perfumadas flores. De certa maneira, assumiu-se o conselho do guerrilheiro indomável: “A revolução não é uma maçã que cai quando está madura. Tens de a fazer cair”. Implicitamente, o que esteve sempre presente em subtexto foi aquela recomendação do Zeca Afonso “Acho que, acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política”. De facto, nos primeiros momentos, tratou-se de descongelar um padrão de pensamento de política de saúde, de desassossegar as mentalidades, habituadas que estavam a reagir exclusivamente aos acontecimentos, e raramente irem além disso. Era preciso desequilibrar a homeoestase do sistema e aplicar o princípio de Pascal à situação que se estava a viver no sector: “O aumento de pressão em um ponto do líquido em equilíbrio é transmitido integralmente para todos os outros pontos desse líquido e das paredes do recipiente onde ele está contido”. Basicamente foi isso que se passou e se andou a fazer.

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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