Entregar a tribunais a aplicação em concreto da lei não é de saudar

 Entregar a tribunais a aplicação em concreto da lei não é de saudar

A Constituição da República Portuguesa já teve sete revisões. A oitava revisão constitucional foi aberta, a 12 de outubro, pelo Chega e o prazo de entrega de projetos terminou a 11 de novembro. (www.jn.pt)

Por iniciativa do partido Chega está em marcha um processo de revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), que não criará, pelos vistos, um amplo debate no Parlamento e muito menos na sociedade portuguesa, quiçá ficando entre umas quantas alterações cirúrgicas e uma revisão parcelar com algum significado, mas com poucas consequências.

“Na revisão constitucional não está em causa se o Chega vai passar ou não vai passar. O que está em causa é se vamos chegar a consensos para melhorar e modernizar o nosso texto fundamental”, defendeu André Ventura, na recente sexta-feira (11 de novembro), em declarações aos jornalistas. (Créditos fotográficos: Getty Images – www.noticiasaominuto.com)

O que salta à vista de inédito e abstruso é, do meu ponto de vista, a possibilidade de, em emergência sanitária, ser decretado um confinamento obrigatório sem declaração do estado de emergência, mas com possibilidade de recurso judicial urgente.

A proposta de revisão constitucional do Partido Socialista (PS), entregue a 11 de novembro, mexe em direitos fundamentais para tentar resolver problemas de saúde pública e de acesso a dados para investigação judicial.

No âmbito dos direitos, liberdades e garantias, o PS troca o termo “raça” pelo termo “etnia”, substitui a expressão “direitos do homem” por “direitos humanos” (formas de expressão mais consentâneas, mas que não urgem revisão constitucional), cria o direito à alimentação (assegurado pelo Estado e pelas autarquias) e garante o acesso universal à água, ao saneamento e ao transporte público, tal como abre a possibilidade de haver número único de cidadão.

Já temos o direito constitucional à habitação, ao trabalho, à segurança social e à saúde. Porém, o preço da casa (propriedade ou renda) torna-a inacessível a tantos cidadãos; o desemprego, a precariedade e a falta de condições e de valorização do trabalho crescem a olhos vistos; a proteção na invalidez e na velhice é mais que insuficiente; e o acesso à saúde colide com a ambição negocial dos privados e com a depauperação do serviço público de saúde. 

Ainda no quadro dos dados pessoais, a proposta socialista abre a possibilidade de haver um número único de cidadão, em vez do que sucede hoje, com um número de identificação de cidadão, um número de identificação fiscal, um para a segurança social e outro como utente dos serviços de saúde. A CRP proíbe a atribuição de um número nacional único ao cidadão, o que o PS revoga.

Mariana Vieira da Silva esteve na quinta-feira (10 de novembro) no briefing do Conselho de Ministros. O Governo diz que não está a condicionar a revisão constitucional sobre emergência sanitária. (Créditos fotográficos: Lusa / Manuel Almeida www.dn.pt)

Outra norma constitucional que os socialistas querem tirar da lei fundamental é o princípio de que deve o Estado a assegurar a rede de educação pré-escolar. “Criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar”, lê-se no artigo relativo ao direito à educação. O PS entende que o Estado deve assegurá-lo, mas não necessariamente através do sistema público e resolve o direito ao acesso incluindo a educação pré-escolar e o ensino secundário na alínea que garante o ensino universal, obrigatório e gratuito e onde, atualmente, só é referido o “ensino básico”.

Também se inscreverão nos deveres do Estado a luta contra as alterações climáticas. Não vejo que tal inscrição na CRP traga mais-valia significativa. Não se ameaçam com a Constituição os exploradores dos recursos fósseis, o uso do automóvel, do avião ou do navio, bem como a praga incendiária, ou a desflorestação em barda. Basta a lei, a aplicação e a sanção.

No âmbito da saúde pública, o PS quer a possibilidade de decidir confinamentos obrigatórios em caso de “doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou de infeção grave” sem necessidade de ser decretado estado de emergência, mas com “garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. É a formulação encontrada para abrir caminho a nova lei de emergência em saúde pública. A alteração é introduzida num dos artigos relativos aos direitos e liberdades fundamentais, no atinente ao “direito à liberdade e à segurança”, que já tem exceções, como a detenção em flagrante delito ou a prisão preventiva. A proposta acrescenta-lhes a separação de portador de “doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. É a judicialização das leis.

O PS quer a possibilidade de decidir confinamentos obrigatórios em caso de “doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou de infeção grave” sem necessidade de ser decretado estado de emergência, mas com “garantia de recurso urgente à autoridade judicial”

Com a garantia de possibilidade de recurso urgente à autoridade judicial, a proposta do PS tenta sossegar os receios de limitação de alguns direitos fundamentais. Com efeito, a única exceção que a lei fundamental já prevê para a limitação de liberdade em questões de saúde implica uma decisão judicial prévia e não só a possibilidade de recurso. Tal é o caso do “internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”.

No atinente ao acesso a dados para investigação judicial – como é o caso dos metadados, já que o Tribunal Constitucional (TC) declarou inconstitucional a lei vigente, no encalço de decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e não há garantias de que nova lei passe no TC –, o PS tenta resolver o assunto mexendo em vários artigos relativos a direitos fundamentais, a começar pelo direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações.

O Partido Socialista quer alterar na Constituição da República Portuguesa, sobretudo: confinamento, metadados e “identidade de género”. (Créditos fotográficos: António Cotrim/Lusa – observador.pt)

Aí, propõe a introdução de normas a permitir a vigilância eletrónica do domicílio ainda que só com autorização judicial: “A vigilância eletrónica do domicílio só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei”; e a proibir “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.

Contudo, logo a seguir, virá um novo artigo a excetuar essa proibição: “Excetua-se do disposto no número anterior o acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação, para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada, nos termos a definir pela lei.”

Será, sobretudo, com esta norma que o PS quer resolver o problema do acesso e uso a metadados – os dados de tráfego e localização de equipamentos eletrónicos, como telemóveis e computadores, e não dados de conteúdo dessas comunicações – pelos serviços de informação. Uma lei desse teor foi declarada inconstitucional em 2015. Tinha sido aprovada pelo Partido Social Democrata (PSD), pelo PS e pelo CDS, mas o então Presidente da República (PR), Aníbal Cavaco Silva, enviou-a para o TC, embora dizendo concordar com esta alteração legislativa por questões de segurança nacional. Porém, o TC declarou-a inconstitucional. Os juízes constitucionais voltaram a pronunciar-se no mesmo sentido em 2019, depois de nova aprovação da lei por maioria alargada e de o PR a ter promulgado, sem recurso ao TC. E o Partido Comunista Português (PCP), apoiado pelo Bloco de Esquerda, usando a possibilidade de um décimo de os deputados eleitos (23) pedirem fiscalização sucessiva de leis ao TC, usou dessa prerrogativa.

A lei dos metadados é ilegal desde 2009 e a Procuradoria-Geral da República não tem poder para se queixar, segundo o Tribunal Constitucional. (Créditos fotográficos: Nuno Ferreira Santos – www.publico.pt)

O uso de metadados pelos serviços secretos ficou vedado. Todavia, o uso para efeitos de investigação criminal era possível até que o TC declarou inconstitucional também essa parte, decisão que provocou problemas a processos judiciais que decorriam e a investigações em curso.

Foram os metadados e a emergência sanitária que levaram o actual PR a pressionar o Parlamento para a revisão da CRP, esquecendo que a iniciativa da revisão cabe em exclusivo aos deputados. Recordo que, por essa razão, um discurso de Cavaco Silva foi duramente criticado por ter sugerido pontos que deveriam ser objeto de revisão constitucional.

A proposta de revisão constitucional do PS tem cerca de 40 alterações, algumas mais substanciais (como as relativas à saúde pública), outras de formulação e de adaptação da linguagem aos tempos atuais, no que o primeiro-ministro, António Costa, disse ser uma iniciativa de modernização, recusando a discussão de questões institucionais como propõe o PSD, cuja proposta inclui alterações, a exemplo do mandato do PR (único, de sete anos) e nos demais (de cinco anos, em vez dos quatro atuais), na redução do número de deputados para 181 e na designação de dois dos juízes do TC pelo Presidente da República.

Foram os metadados e a emergência sanitária que levaram o actual PR a pressionar o Parlamento para a revisão da CRP, esquecendo que a iniciativa da revisão cabe em exclusivo aos deputados

Outras propostas são as de acrescentar às tarefas fundamentais do Estado o desenvolvimento sustentável, a erradicação da pobreza, o combate às alterações climáticas, as necessidades de desenvolvimento específicas do interior do País, a promoção da igualdade entre homens e mulheres e a promoção dos laços com as comunidades portuguesas residentes no estrangeiro; eliminar a palavra “raça”, substituindo-a por “etnia” no artigo relativo ao princípio da igualdade, no qual introduz a identidade de género (faz o mesmo no relativo aos direitos dos trabalhadores); acrescentar a integridade psíquica no artigo que garante a inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas; introduzir as “garantias de defesa em processo disciplinar” nos direitos dos trabalhadores; incluir o princípio de que “salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei, incluindo a salvaguarda do montante e condições de pagamento contratualmente acordados”; garantir que “o trabalho assalariado só pode ser prestado com base em contrato livremente celebrado”; proibir o trabalho forçado e o trabalho infantil; introduzir, no artigo relativo aos direitos dos consumidores, a noção de “serviços de interesse económico geral”e elencá-los: fornecimento de água, de saneamento, de energia, de transportes coletivos urbanos, de telecomunicações, de correio (“Quando se trate de atividades abertas à atividade privada, a lei estabelece as necessárias obrigações de serviço público às empresas encarregadas da sua prestação”); acrescentar a medicina reprodutiva e paliativa nos cuidados de saúde que o Estado deve garantir; no direito à habitação, incluir um novo artigo: “Estabelecer medidas de proteção especial dirigidas a jovens, cidadãos com deficiência, pessoas idosas, e famílias com menores, monoparentais ou numerosas, bem como às pessoas e famílias em situação de especial vulnerabilidade, nomeadamente as que se encontram em situação de sem abrigo, os menores que sejam vítimas de abandono ou maus-tratos, as vítimas de violência doméstica e as vítimas de discriminação ou marginalização habitacional.”; incluir o bem-estar animal, a gestão racional e eficiente de resíduos e a promoção das energias renováveis no artigo sobre ambiente; e promover a literacia digitalde todas as camadas da população e promover os direitos fundamentais e os valores consagrados na Constituição, em todos os graus de ensino.

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Sendo a mais duradoura das seis constituições nos dois séculos de constitucionalismo (1822-2022), a CRP logrou o maior período de estabilidade constitucional desde 1896, por não sofrer alterações em 17 anos, desde 2005 (sétima revisão constitucional). Entendendo-se o PSD e o PS (fazem maioria de dois terços), há condições para revisão que garanta mais 50 anos à CRP. Porém, como o PS não quer mexer na organização do poder político, tal desiderato fica diminuído. Se excetuarmos o perfecionismo redacional, praticamente ficamos na mesma.

Início da última sessão da Assembleia Constituinte, em Lisboa, no dia 2 de Abril de 1976. Eleita em 25 de abril de 1975 para aprovar a Constituição saída da Revolução de 25 abril de 1974, foi dissolvida com a aprovação da Constituição da República Portuguesa
(Créditos fotográficos: Luís Vasconcelos / LUSA – www.abrilabril.pt)

E não é bom fazer depender do juiz a aplicação em concreto duma disposição legal. Cabe-lhe, em princípio, julgar do cumprimento da lei, não da sua obrigatoriedade ou da sua dispensa.

14/11/2022

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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