Escorar o juízo
O melhor será escorar o juízo. Um tipo é massacrado pela norma, não tanto pelos sinais da norma, de que gradualiza as relevâncias, antes pela norma no olhar dos outros, do outro. Quando isso desaparece, em ambientes de libertação com intensidades de fulgor diversas, somos nós que escapamos a essa prisão, não pela vontade mas pela surpresa – de repente, a lei da gravidade altera-se, a censura exterior dos cumpridores do Grande Costume livra a autocensura dos seus pequenos nadas totalitários.
É desgastante que, durante décadas, seja isso o que nos organiza, a falta de invenção, o desprezo pelo inesperado, o carreiro para ser formiga, carneiro, a carreira do carreirista, da mesquinhez autocomprazida, do filho-da-puta comum. E, no entanto, a regra cai como a bátega de água tropical quando não cumprimos a regra, é vingativa. Não a lei, que também é, pois foi escrita por coletivos de filhos-da-puta com cartão (a ganhar bem, bem colocados), mas a punição. As sociedades que assentam a sua disciplina na punição são as das tribos pedófilas, da tortura, do totalitarismo acéfalo do UM, de Salazar a Putin, passando por Pinochet e Videla, essa escória militar que sempre veio das secretas. No olhar do autuador, do porteiro servil, do segurança que faz ginásio, do gnr, do psp, do chefe, do superior, do medroso, do merdoso, do líder supremo, está o crime e o direito de vida relativamente ao outro fora da lei – o regime fora da lei elege a subversão da lei como real.
Podes ser todo o tipo de coitadinho que a psicologia de massas promova, mas não podes ser fura-regras, se estas atentarem contra o Grande Costume. Atenção que o fura-regras autêntico nada tem a ver com chavasquice, com arruaceirice, com porrada em discotecas nem com incendiador de caixotes de lixo. Não erra o alvo, não despende energias por raiva acumulada. Pode simplesmente enveredar pelo voto de silêncio, o que, nesta época de ruído geral e exponencial, é um modo de sabedoria. Já o dizia o Professor Onde – no texto de Michel Vinaver, Borda Fora – que o trabalho ideal é o de cavar galerias, toupeirar, criar as condições do esbarrondar. Como Bartleby, preferir não…1
Fura-regras nada tem obviamente de fura-greves. O fura-regras é detestado pelo Secretário Geral e mesmo pelo Comité Local. Ele nunca respeita o Controleiro. Agride o delator sem luva e é despromovido pela camarilha acima. E assim sucessivamente, até se chegar à cereja senil no topo da máquina estanque-hierárquica absurda. Um mecanismo destes é um despovoador, dessocializa quando militariza, inventa comando na instância da palavra “libre”.
Não há serviço de meteorologia que tenha lógica neste assunto da regra. É assim a vida do juízo, preparada para a intempérie dos dias, a mais merdosa, a que é fabricada pelo espírito de pertença contra a despertença, a do olhar xenófobo. Quando aquele que necessita de escorar o juízo numa ausência se ausenta de modo visível, para não estar submerso na massa, como a baleia antes de novo mergulho de duas horas na densidade espessa das coisas não visíveis do fluxo ideológico comum que conforta uns, conforma outros e agride terceiros, é logo olhado como o outro do outro; quer dizer, um outro fora do menu das doenças psicológicas de massas que a indústria concebe como verosímeis, em função das normalidades produtivas. Desde quando um coletivo de operárias têxteis não pode ser um coletivo de esquizofrénicas controlado? A terapia são os teares mecânicos. O mesmo acontece nos corredores das linhas de produção que engrenam acefalias nas suas mecânicas e velocidades, nos números e quantidades finais. Esse é o objetivo, o maná. Aliás, pode ser atirado para o lixo como as maçãs para não baixar os preços. O maná dos outros é o meu suado, claro, o meu desapossamento. Posso adquirir o que faço por interposta fronteira. O glamour do objeto fabricado, no altar da mercadoria, é o meu ícone – entre todos, tenho um preferido; a aura é de todos os santos, é claro. Quando o apalpo, e me sabe a porca ou a ferro, a única coisa que fala neles é o óleo sujo dos imperialismos que os faz buscar a forma integrada – o ícone é inteiro, não tem gatos como a louça antiga –, um automóvel, por exemplo, como Cristo capaz de surfar num qualquer Lago Tiberíades que a publicidade redescubra nas traseiras de uma lixeira comum a céu aberto ou de uma linda ETAR. 2
Tinha acabado de olhar para um relógio de sol. A paisagem a oeste era surpreendente: granitos redondos, gigantes sentados na eternidade e estevas e giestas, um pomar ao acaso, romãzeiras mais amendoeiras em desordem, a flor exibindo o seu esplendor petaláceo, os azimutes da luz a cruzarem-me o espírito tortuoso – torto escriba salivas por linhas indireitas, as ervas escapam, não há estatuto que lhes valha, mesmo que a relva possa (questão de mise cabeleireira) ser esplendorosa.
Ali, podia-se respirar, na ponta da vila, na esquina, exatamente, no bico, onde o ângulo permite que os olhares se despenhem sobre as copas – ao longe, o perfil da serra maior envolta num cinzento fumo, como numa luz geral nos mínimos e, apesar deles, longe no longe, a silhueta da serra. Respiramos e enchemos os pulmões do olhar de possibilidades diferentes. O resmungo habitual das tristezas entrechocando-se nas encruzilhadas obrigatórias da rotina, esse mal de vivre que querem que engulamos (ou de como viver) evapora-se naquela ponta suicidária. Voar?
A mim não me fodem. Não entro nessa. Nem em competições de argumentação, como se isto tudo fosse concursos num regime de afluentes que se somam sem limites; sempre mais um e sempre mais irrelevante. Prefiro cócegas. Há uma confusão tremenda entre bandalheira e espaço público, entre lixeira em atividade poluente e abrir fendas de eficácia nas cabeças cimentadas pelo Mesmo.
Trocado por miúdos: nem sequer é o pensamento dominante que chateia, esse que faz do politicamente correto o fluido das trocas e impede a mossa, o “outro adstringente” crítico que o senso comum mantém nos níveis da percepção adormecida. Não, o que lixa é a interpretação coxa e desleixada a fazer de inteligência das coisas. E a fundamentação sem raiz, feita sobre certezas prévias sempre tranquilas no sofá da ortodoxia.
Para onde is? 3 Assim era o nome de um Gil Vicente em cima de abril. A Primavera cheirava a antecipada, tínhamos vida solta que os esbirros – os olheiros da pide eram muitos – e a massa salazarenta já não os continha. Não era apenas descontentamento, era um viver fora de baias. Já não controlavam tudo como em certas sociedades acontece, nem um peido é legal, vira logo quadro penal. O policial virava-se para o imediatamente político – confunde-se partidário com político, uma das maiores bestices do apoucamento da política – e, nas brechas, a boa desordem caminhava pelos seus próprios pés. O sistema do desejo não era contido nos manietares do hábito. Os gajos que estão sempre do lado da ordem, de qualquer ordem, que pensam hierarquicamente e respeitam o de cima porque acima, que nem sequer um silogismo bem tropeçado tentam, por ser processo e não comando, cumprem o monolitismo, a sua fé é essa, a sua missa salivar nas orações de mimetismo cartilheiro. Nem sequer a energia de uma fé residual aflora.
O quadradismo é um dos males do século. Essa malta nunca saiu da tática de Aljubarrota. Ainda pensam que o fantasma da padeira lá circula em busca de castelhanos — o seu nacionalismo é um quintal. Não é mesa de pé de galo a viajar no tempo, é patriotismo aos quadradinhos, de bairro, com moldura. Gostam de quadradinhos, de janelas de quadradinhos? Eu não, sem o palco não existo. Nem de historinhas de bonecada ligeira.
Traço grosso dizia o mestre, o grosso tem direito a existir. A beleza de um tubérculo? O rizomático caminho da desordem ordenada abre veredas, interstícios que são miradouros para paisagens não inventadas. Ordenar nada tem de ordeirar.
Portanto, estou pendurado num istmo de granito e tenho o país aos pés. Não estou no camarote do Príncipe, nem sou dono de nenhum hectare de ar sem poluição, aqui o vento limpa, limpa-nos a vista. Isto é o contrário do despovoador do Beckett4, essa máquina anticomunitária. O começo de uma comunidade podia ser esta solidão na paisagem livre de classificações. Parque natural? Olho sem lentes interpretativas, pertenço à rocha em que me sento. Sou eu aquele pedaço de meteorito que ali se cravou, respiro outra galáxia no peito.
Isso é o quê? – pergunta-me. É aquilo que, afinal, estava antes e foi com a água do banho. Uma beleza inicial que indica o caminho do construível. Essa palavra não existe – há uma parecida com T –, necessitamos de um novo vocabulário, de sintaxes imprevistas.
O melhor será tirar a escora ao juízo.
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Notas da Redacção:
1 – O autor refere-se ao romance “Bartleby, o Escrivão”, de Herman Melville, em que o escrivão começa a “preferir não fazer”.
2 – Estação de tratamento de águas residuais, que, no Brasil, se designa também por estação de tratamento de esgoto.
3 – “Para onde Is?” foi o primeira peça da Comuna a subir ao palco.
4 – O autor alude ao livro “O Despovoador / Mal Visto, Mal Dito”, de Samuel Beckett.
25/04/2022